P r e f á c i o

 

 

A

década de 60 foi sobremaneira difícil para o funcionalismo estadual do Rio Grande do Norte e em especial para a Polícia Militar

O governador, aliado a um bando de sádicos, que integrava seu staff, perseguia, maltratavam e humilhavam a todos, pelo simples prazer de mostrar força.

Exatamente nesse período, e dentro desse quadro, é que o autor desse livro, Júlio Ribeiro (não o de “A carne”), vindo como eu das quebradas de Serra de São Bento, mal saído de uma infância dolorosa e de uma adolescência extremamente sofrida, vem “sentar praça” na Polícia Militar, da qual fez sua casa e única família, que conhecera até então.

Dotado de personalidade muito forte e intimamente revoltado com as injustiças que a vida lhe reservara desde seu nascimento, não suportava injustiça e não se calava por medo de nada, razão que o levou a fazer parte de alguns movimentos na corporação, mal começara a rabiscar as primeiras frases.

É narrando os fatos e circunstâncias de sua vida que Júlio Ribeiro centra o tema de “Luta, Sofrimento e Glória”, seu mais recente livro, mostrando detalhes e situações passados a partir da sua infância, até os dias atuais, entrando em pormenores que chocam, ferem e até revoltam que lê esta obra.

Ao entrar para PM, conheci o Júlio já sargento e nos tornamos bons amigos, apesar de nem sempre termos as mesmas idéias sobre determinados assuntos. Essa amizade foi o que certamente o levou a escalar-me para prefaciar sua última criação (não a derradeira), o que faço com imenso orgulho, conhecedor que sou da luta leal, desinteressada e honesta deste ilustre amigo e colega de profissão.

Seu livro deve ser lido e meditado não só por todos os policiais militares, mas por todos aqueles que amam a verdade e apreciam saber as nuances escondidas da história. Sem sobra de

dúvidas posso afirmar que a saga do Sub Júlio e seu mais recente trabalho farão parte do acervo cultural da História da Polícia Militar e do Rio Grande do Norte.

Espero que os prezados leitores tenham bom proveito do livro e analisem, no seu linguajar forte e direto, os fatos como se passaram e a visão do autor sobre eles, visão esta de que algumas vezes discordo, por motivos óbvios.

Agradeço e desejo a todos uma boa leitura.

 

 

Antônio de Pádua Crizanto.

Coronel da Reserva Remunerada

 

 

A p r e s e n t a ç ã o

 

 

N

o final dos anos setenta, Natal foi abalada com a notícia de homicídios praticados por um caseiro contra estrangeiros residentes no bairro de Capim Macio.

Os detalhes do evento criminoso causaram forte impacto em todos os segmentos sociais aqui e alhures.

A imprensa registrou o episódio em seguidas reportagens. O mais suave relato dos acontecimentos não teria força para interpretar a dor que tomou conta das famílias potiguares

Promotor de Justiça em Natal, com atuação na Vara dos Homicídios – Júri Popular, fui designado para acompanhar o Inquérito Policial que foi presidido pelo Oficial da PM Antônio de Pádua Crizanto, que assina o Prefácio deste livro. Como Escrivão atuou Júlio Ribeiro da Rocha, o Autor desta obra.

Passados esses anos, os três deram destinos diferentes às suas vidas. Pádua é Coronel da Reserva Remunerada da PM/RN. Júlio é político e escritor. Sou ou pretendo ser um advogado provinciano, agora investido na missão de Apresentador.

Júlio, em linguagem romanceada, narra episódios que marcaram sua vida, notadamente na atividade castrense. E o faz bem, com estilo forte e corajoso.

Quando necessário, aponta nomes e assume responsabilidade. Escreve sem conter os gemidos pelas dores de injustiças sofridas.

Convivem no livro emoções, denúncias, projetos, esperanças e vitórias. Estas após anos de provação e tenacidade.

Desconheço muitas das personagens citadas. Não posso, portanto, emitir juízo de valor sobre a atuação de algumas pessoas nominadas ou referidas. Essa responsabilidade é do Autor.

Posso, sim, dizer que Júlio não é omisso, silente ou submetido às intempérias da vida.

Pelo contrário, exerce a cidadania como poucos. Luta. Sofre. Perde. Vence. Continua.

Recentemente, dele recebi os subsídios para a causa que patrocinei perante o egrégio Tribunal Eleitoral do RGNorte, voltada ao restabelecimento da verdade das urnas no tocante à definição da  posição da Assembléia Legislaltiva. Teoricamente, a causa é vitoriosa. Seguramente, coube a Júlio a estruturação da documentação levada a Juízo.

Por todos esses motivos, apresentar “Luta, sofrimento e glória” é um privilégio.

 

Armando Holanda

 

 

Na casa de tio Francisco

 

T

io Francisco morava no sítio Beija-Flor, numa casa de taipa, sem reboco, suja, de chão batido e cheia de teia de arranha. Ele e dona Zefa, sua mulher, eram rudes. O casal tinha quatro filhas menores – Lúcia, Maria, Vera e Tereza, as quais não gostavam bem de mim.

Na residência de tio Francisco não existia cama, nem rede para mim. Eu dormia no piso de barro batido, sem nenhum forro ou agasalho.

Chequei àquela casa no período  do inverno e fazia muito frio. À noite, eu procurava me aquecer deitando-me junto às trempes onde era feito o fogo no chão, porém, eu disputava o espaço com dois cachorros sarnentos e fedorentos, que passavam a noite grunhindo e se coçando.

Dona Zefa tratava-me mal. Não tinha qualquer afeição por mim. Para ela eu não passaria de um ser inanimado. Ela e meu tio só me davam desprezo e sem motivo batiam-me com uma peça de corda, deixando minhas costas lapeadas.

Os vizinhos de tio Francisco logo tomaram conhecimento sobre a minha presença naquela casa. Os maus-tratos que tio Francisco e dona Zefa me dedicavam chamaram à atenção dos vizinhos da redondeza, que  indignados protestavam.

Sem entender a razão pela qual não via mais meus pais, sem seus carinhos, sem o calor do seio materno, levava-me a passar chorando o dia inteiro.

Entre os vizinhos de tio Francisco, estava seu Manezinho, um velhinho de bons modos, de cabelos cor de algodão, que morava próximo à casa de tio Francisco, muito respeitado pelo casal, o qual passou a ser o meu santo consolador; e todo dia ele ia à casa de tia Francisco, a fim de me confortar. Mas eu não parava de chorar.

 

A amável velhinha

 

D

ona Socorro, fazendeira da região, morava a poucos metros da casa de tio Francisco. Era uma mulher viúva, de idade avançada, rica e bem simpática. Mulher bem educada e de boa conversa.

Já com as pernas trêmulas, ela não ia à casa de tio Francisco a fim de também me proporcionar alguns instantes de carinho, mas mandava a criada Nevinha ir me buscar.

Em uma daquelas vezes, a amável senhora mandou Nevinha levar uma rede bem novinha para mim. E com um aviso: É só para ele.

Ela me segurava pelos braços. Beijava-me no rosto. Procurava me acalentar apertando minha cabeça ao seu seio. Dava-me o afeto que toda criança precisa, como se eu fosse um  de seus netinhos. Conduzia-me a um dos quartos da casa grande, onde existiam dezenas de brinquedos velhos e novos pertencentes aos seus netos, que se encontravam distantes, morando com os pais.

Dona Socorro sempre me dava um daqueles brinquedos, que me deixava cheio de alegria. E procurava atrair minha atenção para os mínimos detalhes.

Os carinhos de dona Socorro cativavam-me demais, enquanto na casa de meu tio, só tristeza e desprezo.

Nenhum carinho, todavia, preencheria o vazio deixado na minha vida pelo abandono que minha mãe me submeteu.

Dona Socorro tinha dois filhos casados e seis netos, que moravam no Rio de Janeiro. Com ela morava José -  seu filho de criação - com 12 anos de idade.

Aquela velhinha de cabelos longos, mesclados de louro e branco que se confundiam com veludo, de olhos verdes e atraentes, tinha um corpo que conservava, ainda, toda a singeleza de quem fora a mais pura beleza.

Pontualmente, todas as tardinhas, ela sentava-se numa cadeira de balanço, que, permanentemente, ficava no alpendre daquela  imensa  casa.  Balançando-se  sem  parar, com o seu rosário fazendo suas rezas costumeiras até a noite chegar. Passava continha-por-continha nas pontas dos dedos trêmulos, porém, com uma face cheia de vida, não se tocando com o avançar da idade.

Quando uma vaca invadia o roçado, que ficava em frente à sua casa, dona Socorro, sem perder o contato dos dedos com as continhas do rosário, gritava para o seu filho de criação:

n José vem cá, meu filho!

n Pronto, madrinha!... - gritava ele.

n  José tange a condenada daquela vaca que tá comendo a lavoura! Ô diacho!... A gente não pode nem rezar sossegada!... 

Ela não deixava de ser elegante no tratar com as pessoas. Ao seu filho de criação, dedicava-lhe a ternura que nem toda mãe daria ao seu próprio filho. Tratava-o de filho para lá, filho para cá. Colocava-o no colo, beijava-o na face, tal qual o fizera comigo. E José não se enciumava.

À noite, ela mandava José tomar banho, jogava-lhe perfume tirado  entre os bons que não lhe faltavam nos baús de tábuas dos cheirosos cumarus, feitos por encomenda e a capricho pelos marceneiros da terra. Deitava-o em sua rede bem limpa e perfumada, e balançando-o, cantava uma canção de ninar até que o sono chegava. Mesmo tendo José 12 anos de idade, tratava-o como uma criancinha.

 

O amor dos passarinhos

 

 

N

uma tarde quando o inverno já havia se ido, eu fui até à Lagoa do Felipe, que se localizava a uns mil metros da casa de tio Francisco, cujo caminho passava bem em frente à casa de dona Socorro, a qual estava sentada na cadeira de balanço do alpendre, com o seu rosário nas mãos, fazendo suas preces a Deus, como de costume.

Aproximei-me à beira d’água. Sentei-me num galho grosso e rasteiro de um frondoso cajueiro, que parecendo até que me oferecia abrigo, nada me reclamou. Seus galhos imensos sombreavam a redondeza, sufocando a vegetação menor, que de raquita não passou.

Fiquei observando os pássaros  que  cantavam, pulavam  e voavam sem ter contas a quem prestar, senão à  natureza que os havia criado. Eu vi uma rolinha no galho de uma grande árvore, que se aproximava do seu ninho, arrulhava para seus filhotes e lançava aos seus bicos os alimentos que ela lhes levara.

Eu percebi que existia  amor e  carinho até entre aqueles pequeninos animais. Percebi, ainda, que eles eram felizes, pois tinham uma mãe para lhes preteger. Não eram como eu que tremia só com os gritos que tio Francisco me dava.

Que eu não tinha mãe!...

Erguendo a vista para o alto, vi a abóbada celeste azul cor-de-anil; no horizonte, vi o sol que lançava os seus últimos raios sobre a maldade de uns e a bondade de outros, anunciando, indistintamente, que no dia seguinte voltaria. No seio celestial deitava-se o sempre lindo e encantador ocaso comunicando que a noite ia chegando.

De repente, celebrando aquele acontecimento, a passarada toda cantando, formava a  mais  perfeita  e harmoniosa  orquestra sinfônica, que só o Criador sabe explicar. Parece que tudo aquilo seria uma maneira para me despertar.

Baixei a vista, levei-a outra vez ao céu, à lagoa e à paisagem verde. Esta, já ficando escura. Tudo aquilo me deu profunda tristeza que me atingiu na alma. E, pensei comigo mesmo:

“Porque sofro tanto!... Estes passarinhos não sofrem. Eles tem mãe!... eu quero ter minha mãe!...”

Baixei a vista e comecei a chorar. Chorei muito. As lágrimas corriam-me na face como se fossem a água de uma vertente.

Ao mesmo tempo, eu  senti que uma força dentro de mim me  impulsionava a procurar meus pais.

Dona Socorro notara minha falta e viu,  quando estava rezando, que eu havia seguido o caminho da lagoa. Apoiada em José, que levava um lampião, foi à minha procura. Encontrou-me na escuridão, porém, não a impediu de me enxergar. Aproximou-se e delicadamente  perguntou:

“Meu, filho por que você está chorando?"

Aquela voz súbita quase me deu um susto. Ergui a cabeça com a face embebida em lágrimas. Procurei enxugá-las com as costas das mãos.

n Por que você está chorando, meu filho?

n Eu quero mamãe... Eu quero meu papai... Eu quero!...

n  Eu vou falar com seu tio Francisco para encontrar seu pai e sua mãe.

Aquele doce criatura pegou-me pelo braço e levou-me à presença do meu tio.

A escuridão tomara conta de tudo. Os pássaros, antes felizes a cantar, ganharam às árvores. Recolheram-se entre as ramagens, que se confundiam com a escuridão da noite. Somente  os vaga-lumes se distinguiam com o seu pisca-pisca sem trajetória.

Chegamos à casa do meu tio, o qual se encontrava na sala conversando com  sua mulher, e nem se preocupava comigo.

Ao  centro da sala, descia da cumeeira um arame, ao qual estava pendurado um candeeiro a querosene. Com a porta aberta veio um vento forte e apagou a chama. Ficou tudo no escuro.

n Zefa, cadê o fósforo? - perguntou meu tio.

n Está em cima da mesa.

Ele saiu tateando pelo escuro até alcançá-lo. Retornou rapidamente. Riscou um fósforo, reativando a chama.

“Pronto, tudo no claro!” - exclamou ele.

Em seguida sentou-se no mesmo lugar. Com uma cara bem fechada, olhou para mim, sem perguntar onde eu estava, disse-me:

“Vá dormir!"

E fui. Peguei um tamborete velho, que era utilizado toda noite para subir e armar a rede, que dona Socorro me dera há poucos dias. Deitei-me. Não tive sono e fiquei rolando na rede. O meu pensamento estava voltado à procura dos meus pais.

 

Minha primeira  fuga

 

A

manheceu o dia. Quase não dormi. Levantei-me mais cedo do que nos outros dias. Dona Zefa, como dona de casa, enfiava-se nos seus afazeres domésticos. Era uma sexta-feira. Tomei café. E o desejo de encontrar os meus pais não me deixava em paz. Aquela vida miserável não me agradava.

Aquela força dentro de mim não se cansava, agora com mais veemência,  ordenava-me procurar meus pais.

Peguei um caminho estreitinho que saiu numa estrada de barro, que anos depois tomei conhecimento que dava acesso à cidade de São José de Campestre, justamente no  dia de feira. Fiquei às margens da estrada, e não tardou chegarem outras pessoas, entre elas um cidadão me perguntou:

n Para onde você vai, menino?

n Eu vou procurar meu pai...

n Ah! Eu conheço seu pai.

n Você quer mesmo seu pai?

n Quero...

n  Seu pai está na feira de Campestre. Eu vou lhe entregar a ele.

O homem, continuou dizendo que iria me entregar a meu pai,  segurou-me pela mão e alisou meus cabelos.

Vem chegando o carro dos feirantes. Era um caminhão grande cheio de bancadas. Parou, e nós subimos. O estranho sentou-se ao meu lado.

O carro velho fazia um barulho terrível e parava durante todo o percurso para apanhar os feirantes que o esperavam ao longo da estrada.

Finalmente, chegamos à cidade de Campestre. O homem, desta vez  me segurando pelo braço,  desceu do veículo. E não me largava. Ganhamos à feira. Ele me deu lanche, comprou um chapéu de palha de carnaúba, colocando-o na minha cabeça. Comprou um par de alpargatas de couro cru, colocou-as nos meus pés. De velho, só a roupa, que fora um presente de dona Socorro.

 Sem soltar o meu braço, dizia que estava procurando o meu pai, mas nada de encontrá-lo!

A tarde chegou e nada!...

O desconhecido sem soltar o meu braço, levou-me a um carro, no qual embarcamos. Querendo chorar, perguntei:

n Cadê meu pai?

n  Não chore, menino - disse ele - que eu vou lhe deixar na casa de seu pai.

Lá se vai bem lento o veículo numa estrada empoeirada, pára aqui, pára acolá. Já era escuro quando o veículo parou mais uma vez. O homem desceu comigo, sem largar o meu braço. Seguiu numa vereda. E eu não sabia para onde estávamos indo. Ele era vizinho de tio Francisco. Devido a minha idade, eu não o conhecia. Só entendi que lugar era aquele quando vi tio Francisco. Comecei a chorar com medo de ser castigado com algumas lapadas de cordas. Eu gritava não quero ficar!!... Não quero!!...

Não! Não! Não chore, que eu vou pedir a seu tio para não bater em você - adiantou o estranho.

Realmente pediu, acrescentando:

n  Seu Francisco, este menino ia fugindo a procura do pai dele. Eu resolvi trazer ele de volta, mas o senhor vai me prometer que não baterá nele. O senhor me promete?

n Prometo - respondeu friamente.

n Então, está aí o menino! Não bata nele! Boa noite, seu Francisco.

n Boa noite.

Tio Francisco olhava-me de cima-a-baixo com aquela monstruosa cara, e só deu tempo para o seu vizinho se afastar. Ele  segurou-me pelo braço,  apanhou   uma   peça   de  corda de agave. Deu-me uma brutal surra. Foi cruel!!!...

 

Deus tinha outro propósito

 na minha vida.

 

C

hegou o período da safra do algodão. Nos roçados de dona Socorro via-se aquele imenso lençol branco, com um batalhão de homens e mulheres trabalhando na cata.

Enquanto isto, a situação na casa de tio Francisco continuava cada vez pior. E eu não parava de chorar.

Naquela repudiável vida, eu não podia continuar, especialmente, depois da minha má sucedida fuga.

Uma determinada sexta-feira, bem cedo, tio Francisco mandou a sua mulher me dar um banho de sabão comum, o qual assanhou as sarnas herdadas dos cachorros sarnentos que dormiam comigo junto às trempes, que nem os remédios de  dona  Socorro  conseguiram eliminá-las. Dona Zefa enxugou-me com um pedaço de lençol sujo que só fedia a urina das meninas.

Vestiu-me a mesma roupa, aliás,  a única, a qual  me dera aquela boa velhinha - dona Socorro. Meu tio pegou uma bolsa velha de feirantes, colocou-a nas suas costas. Indiferente, olhou-me e disse:

“Vamos! Eu vou lhe entregar ao seu padrinho, que mandou lhe buscar”.

Seguimos percorrendo o mesmo caminho, o qual eu o havia trilhado, quando da minha fuga. Meu  tio  apanhou o mesmo carro. O veículo superlotado, lento, parava daqui pra li. Vez por outra, estancava. E só pegava na manivela.

Chegamos à cidade. Era a mesma cidade de antes - São José de Campestre. Tio  Francisco  desceu  do  ônibus, e não fez como aquele homem que me segurava pelo braço. Ao contrário, ele me arrastava. Logo, chegamos a uma barraca grande de mangalhos. Lá estava aquele homem bem simpático dos seus 50 anos de idade, de olhos azuis e pele  vermelha. E diversos empregados tomavam conta de várias barracas grandes, também, de mangalhos.

n Este é o seu afilhado - disse meu tio ao homem de olhos azuis.

n Coitadinho! Como está magro e sarnento!? Deus te abençoe, meu filho. Você vai morar comigo e será criado como o meu próprio filho – disse ele.

Meu padrinho olhou-me demoradamente e em seguida,  tomou-me nos seus braços. Tio Francisco, sem pronunciar uma só palavra, desapareceu sutilmente, com uma rapidez incrível, sem, contudo, um adeus me dar, de cujo coração nunca me dera sombra.

Meu padrinho chamou um dos seus empregados, ao qual determinou que me levasse para tomar café numa banca na feira. Serviram-me leite, queijo, pão, biscoitos e manteiga. Igual, só na mesa da velhinha - o meu anjo protetor. Comi e matei a fome. Suspirei profundamente. O suor corria-me da testa. O empregado olhou-me e disse:

“Parece que a comida deu na fraqueza!"

Padrinho João ficou muito chateado ao voltarmos quando o empregado lhe disse:

n Seu João, o menino suou tanto que parece que a comida deu na fraqueza!...

n Ele é meu afilhado, mas, a partir de agora, será considerado meu filho, portanto, deixe de piadas – advertiu.

n  Sim, sinhô, seu João, eu estava brincando!... Desculpe-me.

n  Está desculpado, mas não me faça mais este tipo de brincadeira.

Passava do meio-dia, quando padrinho João mandou que uma senhora de uma barraca de comida bem perto dele me servisse almoço. Eu não estava com fome e não quis comer. O tempo foi passando. Era grande o movimento naquelas barracas. O sol estava baixinho. Padrinho João mandou juntar aquela troçada inteira, recolhendo-a em vários caixões, que foram colocados num comboio de burros mulos e cavalos. 

Padrinho  João  botou-me  no  meio de uma das cargas, enquanto ele ia montado num cavalo  bonito  cheio   de  arreios,  caminhando  à  frente  da   tropa.

Foi uma longa caminhada e já era tarde da noite quando meu padrinho encurtou as rédeas do seu cavalo, parando-o em frente a uma casa grande rodeada de alpendres. Ao lado da qual existia um curral enorme cheio de gado.

Do interior da casa surgiu um grito:

n João, Júlio veio?

n Veio!!... - respondeu meu padrinho arrastando a voz.

Aproximou-se de nós uma senhora de estatura média, e foi ao encontro de padrinho João, que estava me retirando do meio da carga, e disse:

“Guilhermina!... Leva ele e lhe dê um banho de água morna com enxofre porque ele está empestado de sarna”.

Sem demora,  madrinha Guilhermina me levou para cima de uma pedra chata semelhante a um tapete e deu-me um banho com água bem morna com enxofre para eliminar as sarnas do meu corpo. Minha madrinha rompeu o silêncio exclamando:

“Ah, diacho!! Que danado fedorento!!?"

Terminou o banho. Enxugou-me com uma toalha bem perfumada.  Vestiu-me uma roupa cheirando a nova. Colocou um par de alpargatas novas nos meus pés. Levou-me à mesa e sentou-me num tamborete, e lá ela também se sentou com padrinho João e os demais empregados. Foi servido o jantar. Era a primeira vez - na minha vida - que eu comia numa mesa junto com gente grande.

Findo o jantar, madrinha Guilhermina perguntou se eu queria dormir. De olhar baixo, respondi negativamente balançando a cabeça. Pouco depois chegou um rapaz alto e forte que me olhou com desdém. Era  André, o filho mais novo da casa. O qual travou uma conversa grosseira com padrinho João.

Ele não estava gostando da minha presença na família. Padrinho João, contudo, foi bem severo, dizendo-lhe:

n André, meu filho, eu tenho cinco filhos. De solteiro só    você, que não tem praticamente me ajudado em nada. Mas tarde você se casa e ficarei sem ninguém dentro de casa.

n É!... O senhor tem razão, papai! - reconheceu.

Naquela ocasião,  chegou  Zezinho, o filho mais velho da família, com sua esposa Nancy e seus dois filhos - Antônio e Arnaldo -, que moravam pertinho dali.

Nancy era alva e bem simpática. De maneira meiga, perguntou:

n  Comadre Guilhermina, este é o seu afilhado?

n  É, sim.

n  Tão magrinho! - exclamou Nancy com um sorriso franco!

Zezinho me olhou. Riu e fechou a cara. Aquele era o seu jeito, mas de  bom  coração. Entre todos,  Nancy  aproximou-se  de mim.  Agachada, beijou-me à testa infecta de enxofre. Aquele suave beijo fez-me lembrar os beijos de dona Socorro.

Após conversarem longo tempo, Zezinho e sua família foram para casa. Meu padrinho armou uma rede num dos quartos do casarão e disse:

“Vamos dormir, Júlio".

Fui correndo pegar um tamborete para subir, mas, ele  interrompeu:

“Não! Não! Deixe que eu lhe boto na rede".

E, em seguida deu-me a benção:

“Deus te abençoe, meu filho”.

Meu coração bateu de alegria!

Abençoar-me era uma coisa que tio Francisco jamais o fizera. Eu estava caindo de sono. E adormeci logo.

Naquela nova morada tudo era cheiroso - a rede, o lençol e a casa.

Na manhã seguinte, acordei cedo, como acontecia na casa de tio Francisco. E era escuro. No curral, Zezinho já tirava o leite das vacas. Àquela hora, ninguém estava mais deitado. Todos seguiam os costumes e o pique de trabalho do velho João Horácio, que já havia ido à feira de Serra Caiada, com a metade do comboio, a fim de vender mangalhos.

Nancy ia chegando com os seus dois filhos. Ela conduzia quatro canecas de alumínio, das quais me deu uma. Chamou-me com os seus filhos para a entrada do curral feito com varas de aroeira e mourão de mororó. Levou-nos para junto de Zezinho, este pegou as canecas levando-as à xiringa do leite que caia direto do peito da vaca. Eu nunca havia tomado leite no curral. Era muito gostoso! Eu estava mesmo no paraíso!

Antônio e Arnaldo foram para o alpendre, onde ficaram brincando com carrinhos de plástico. Eu,  que  não os tinha, fui ao monturo procurar ossinhos de animais domésticos, que eu, costumeiramente, brincava na casa do tio Francisco. Os dois deixaram os carrinhos e também foram procurar ossinhos para brincar.

 

Os trabalhadores do eito

 

M

eu padrinho tinha grandes plantações de algodão. Sua propriedade ficava vizinha à Fazenda Uirapuru, de propriedade do major de patente comprada Theodorico Bezerra.

Pela manhã, bem cedo, chegaram os homens do eito da mão-de-obra alugada, que trabalhavam limpando o mato.  Padrinho João era homem de barriga cheia. Os trabalhadores tomavam café, lanchavam, almoçavam e jantavam por conta dele.

Ao meio-dia, após o almoço, eles, durante uns 10 minutos, se deitavam no chão debaixo do alpendre ou repousavam na sombra das quixabeiras. E recomeçavam no eito.

Os filhos de meu padrinho não trabalhavam com ele. André vivia mais em São José de Campestre, onde namorava a Isaura, sua noiva, com a qual se casou. O casamento, entretanto, não durou muito. Zezinho, que era casado, tinha a sua vida independente. Rosemiro servia na Guarda Civil do Estado de Pernambuco. Cristiano - o segundo filho casado - era funileiro num lugarejo chamado Riacho, que depois mudou para Tangará. Maria e Severina moravam em Natal, Capital do Rio Grande do Norte.

Todo fim de ano, a família se reunia. Era aquela festa com vinho, queijo e muito peru.

No final da safra daquele meu primeiro ano, os 8 quartos da casa grande ficaram superlotados com sacas de feijão, milho e amontoados de algodão. Foi uma supersafra cheia de alegria para o agricultor. Contudo, devido a grande safra o produto  caíra  de preço, e quem vendeu algodão na folha, não fizera bom negócio. Assim, alguns produtores apenas liquidaram o débito, e estocaram feijão e milho para o consumo da família, que só chegaria até o início do próximo inverno.

Meu padrinho, que não tinha nenhum débito, armazenou toda a produção e só vendeu na alta.

André, que no final daquele ano queria se casar, resolvera cuidar de um bom pedaço de terra; plantou milho, feijão e algodão, e fez boa colheita. No final do ano, vendeu o produto que estava com ótimo preço.

 

Os primeiros anos

 

D

urante dois anos, minha vida foi de uma boa convivência com os meninos. Mas, eu estava grande, e meu padrinho me botou para trabalhar.

Comecei dando recados, e cumprindo pequenas  tarefas que ele me dava. Passava  o dia inteiro, e às vezes entrava pela noite. Meu padrinho não parava de me dar ordem:

“Júlio, vá chamar compadre Zeca. Vá amarrar aquele jumento ali. Faça isso. Faça aquilo”.

Fui crescendo e adquirindo responsabilidade. E tudo saía perfeito. E eu cativava o velho João Horácio, que não perdia oportunidade para me elogiar, tendo-me, inclusive, como o seu preferido em presença de André, o qual lhe dava algumas dores de cabeça toda vez que tomava cachaça.

Vendo minha esperteza, ele foi mudando as tarefas diárias. Ensinou-me a montar nos animais. Com maior responsabilidade, perdi o contato diuturno com os meninos de Zezinho Horácio.

Eu estava fazendo quase todos os trabalhos de adulto. E dava conta. Fiquei  responsável para ir deixar e buscar o gado no pasto; ir deixar o lanche dos trabalhadores no roçado; transportar nos jumentos a ração dos animais; buscar água no açude, utilizando barris nos lombos dos jumentos. Contudo, onde eu chegava, os adultos me ajudavam a colocar a carga.

Minha madrinha me considerava, meramente, como mais um trabalhador e não dedicava os mesmos cuidados que me tinha padrinho João, o qual não escondia a satisfação que sentia pelo trabalho que abracei sem nenhuma rejeição.

Passei dos pequenos aos pesados trabalhos, em igualdade com os trabalhadores, inclusive, no eito. E, não atrasava uma tarefa. Todos se admiravam da minha disposição. E hoje eu fico imaginando de onde eu fui buscar tanta energia.

A resposta à minha pergunta não vem de outro, senão de Deus.

Meu padrinho - apesar da idade - gozava de perfeita saúde e muita disposição para o trabalho. Ele não ficava parado um minuto.

E, eu seguia o seu exemplo. Ele dava um boi para não entrar numa briga, mas quando entrava não saía nem recebendo uma boiada.

Mesmo casado e morando com o sogro em São José de Campestre, André ia toda a semana à residência do pai. Desde a minha chegada que ele mantinha uma rixa comigo. E  vivia sempre  procurando  uma desculpa para me bater, o qual tinha ciúmes do tratamento que o seu pai me dava. Certo dia, ele bebeu descontroladamente, e brigou com a sogra. Depois da briga o mesmo e sua mulher foram morar conosco.

Isaura, sua esposa, era uma ótima pessoa, mas ele continuava maltratando-a e tomando cachaça como se fosse uma obrigação diária. Não ajudava nos trabalhos do pai. Quando padrinho João não estava em casa, ele brigava comigo ou com Isaura. E cada dia se tornava mais violento, partindo logo para espancamento, deixando-nos cheios de hematomas. Nossas vidas viraram um verdadeiro inferno. Isaura não o suportou e foi embora para a casa de seus pais, deixando-o  definitivamente. Separado, ele foi morar com Rosemiro na Capital do Recife.

 

 

 

 

 

Grande seca

F

 

azia três anos que eu estava morando com padrinho João. Chegamos ao mês de junho e  nenhum sinal de chuvas. Os barreiros e açudes - principais reservatórios d’água - só tinham lama torrada.

Sem previsões de chuvas, aquela foi a pior seca da década de 40. Daquele capinzal  verde do ano anterior, não existia mais nem os troncos. O verde das matas se  transformara em garranchos secos. O gado estava morrendo de fome e sede. A maioria dos fazendeiros vendera suas rezes, evitando maiores prejuízos. Sem sinal de chuva, a seca chegava ao seu ponto crítico. Os animais de meu padrinho bebiam no açude da fazenda Uirapuru, do major Theodorico Bezerra, de quem o velho João era amigo pessoal. 

Padrinho  João  havia  armazenado bastante capim seco, pois pelo prenúncio dos antigos aquele  ano  seria  de horrível seca. Não obstante, muitos fazendeiros não se cuidaram tanto...

A ração normal do gado não durou muito, inclusive a palmatória.  Meu padrinho recorreu ao seu estoque de capim seco. Foi retirando para alimentar os animais,  mas  com  certo  tempo o rejeitaram. Ele agiu rápido. Mandou buscar comboios de cargas de mel de furo nos engenhos do agreste. O capim seco, depois de cortado miúdo, era molhado com garapa do mel. A experiência foi válida, salvando os animais. O gado camia chega ficava lambendo os beiços. Até o leite aumentou.

Passavam-se oito meses de seca, a reserva da ração estava chegando ao fim. A fome devastou os animais dos fazendeiros  que não se preveniram, e inutilmente tentaram resistir à seca com poucos meios, mas desenganados viram os animais morrerem de fome e sede.

Sem pastos, a terra era varrida pelo vento que formava  temíveis nuvens de poeira, com redemoinho fazendo ziguezague chega rodopiava. E arrastava o que o vento menos bravo não conseguira levar.

Madrinha Guilhermina, à véspera do dia de São José – o santo da chuva -, 19 do mês de março,  reuniu os vizinhos da redondeza e fez uma grande procissão com uma imagem de São José.

Lá se ia a procissão com muita gente, durante o dia ou à noite. Homens, mulheres e crianças. De noite, uns com lampiões para iluminar o caminho, outros tentavam acender velhas, porém, o vento as apagava, o qual parecia não gostar do santo.  Os fiéis rezavam e contavam hinos de louvor ao santo. Pediam ao santo – aquela imagem de gesso – que intercedesse  junto a Deus  que mandasse chuva para o sertão.

Passou o dia do santo, que na cabeça daquele povo, conseguiria chuva. Rezaram!...Pediram!.... Cantaram hinos de louvor ao santo,  porém, um pingo de chuva não chegou.

O sertajeno cheio de esperança e crença, quanto mais pedia chuva, mais o santo se esquecia.

 

Minha segunda fuga

 

N

a casa de padrinho João o clima não andava bom para mim.  André,  que  chegara do Recife onde havia conseguido um emprego, mas com data marcada  para retornar, dera-me uma surra que causava dó. Minha madrinha vivia insatisfeita e culpava-me pela saída de André para longe. Ela me maltratava quase que diariamente. Minha vida foi transformada, verdadeiramente, num inferno.

Aquela triste situação, que eu estava enfrentando, fez-me pensar em procurar novo rumo na vida.

Naquele tempo, o Presidente da República, atendendo ao clamor do povo nordestino, mandou executar várias obras contra a seca através da construção de açudes nos estados castigados pela seca.

Uma das obras em construção era o gigantesco açude da Guarita, que ficava a  poucos quilômetros da fazenda  Uirapuru. Aquela obra foi a salvação do povo, que estava morrendo de fome. Surgiram, então, os donos de comboios - os tropeiros -, que faziam o carregamento do barro para a obra, no lugar de caminhões ou caçambas que à época não existiam.

Sabedor da construção do açude, que mal tinha começado, e recordando-me da maneira como me tratavam na casa do meu tio, peguei um saco velho, no qual coloquei rede, lençol e roupa. Deixei a casa do meu padrinho. Sai com destino ao açude, a fim de conseguir trabalho e dar início à nova vida. Sozinho. Sem pais, parentes e, padrinhos.

Sem conhecer o itinerário certo, cheguei a um lugar chamado Riacho, que depois mudou para Tangará. Lá,  fiz amizade com um  tropeiro dono de um comboio que ia se alistar na obra do dito açude, o qual me levou para trabalhar com ele. Chamava-se Sebastião - ou chamavam-no de Bastião. E foi com minha cara. Durante a viagem me fez várias perguntas, mas nada que me deixasse embaraçado.

Antes do anoitecer, chegamos à construção do açude. Eu nunca tinha visto tanta gente! Era um grande formigueiro humano, cheio de homens, mulheres e crianças, que circundavam quilômetros, juntos com os animais dos comboios, provocando nuvens horrorosas de poeira.

Chegavam trabalhadores braçais e tropeiros de longe. Existia serviço para quem chegava e queria trabalhar. O pagamento da mão-de-obra era feito com o fornecimento de feijão branco,  rapadura  e  carne  de  charque ou dinheiro. Diariamente,  as pessoas faziam filas intermináveis  ao redor do  barracão de alistamento.

Todo o carregamento do barro se fazia nos comboios  de jumentos e burros mulos. O barracão fornecia milho e farelo para os animais dos comboios.

Numa barraca imensa feita de lona, chamada de barracão que se parecia mais com um circo, ficava um grupo de pessoas letradas, que era responsável pelo alistamento e distribuição dos alimentos para os trabalhadores, além da  ração para os animais.

Bastião alistou-se comigo e seu ajudante Pedro. Recebeu ração à vontade para os animais, que estavam famintos. Colocou milho nos seus bornais. E os alimentou até matarem a fome.

Com lonas, que trazia consigo, ele, com a nossa ajuda, também armou a sua barraca. Foi rápido. Fomos jantar no barracão.  Feijão, rapadura, carne de charque e farinha, eis a refeição dos cossacos(*) e dos tropeiros.

Dormimos dentro da barraca de Bastião. Não era noite de lua, mas os lampiões que circulavam o barracão e os incontáveis candeeiros das barracas, deixavam-na clara que parecia a luz do dia.

No dia seguinte, todos de pé, bem cedinho. Um dos funcionários do barracão chamou um certo cidadão de cor morena, ao qual nos apresentou, dizendo:

 “Este rapaz  se chama Alfredo. Ele vai tomar conta de vocês, como cabo-de-turma. Façam o que ele mandar.

Alfredo reuniu rapidamente o seu grupo de cinqüenta pessoas. Todas de pás e picaretas nas mãos,  com ele seguindo à frente, andamos alguns  minutos  e paramos  junto  a um grande monte de barro. Os cossacos  com as pás em punho enchiam as caçambas dos animais. Só no grupo de Alfredo existiam três comboios de 20.

O tropeiro Bastião foi quem levou o primeiro carregamento daquele dia, contando com o meu auxilio e de seu ajudante.

Pertinho daquela turma, ao ar livre, duas mulheres em grandes tachos, cozinhavam à lenha a comida dos cossacos.

        Alfredo - responsável pelas turmas 105 a 106 - retirou do bolso do cós da calça um relógio grande e liso, que se parecia com uma bússola, que era chamado relógio de algibeira. Olhou a hora e gritou:

“Olha aí cambada da turma 105, suspendam o trabalho e vão almoçar. É só meia hora. Rápido!"

Deu meia hora e retornou a primeira turma. Alfredo aos berros, determinou:

“Vá a turma 106. Rápido!"

Nós almoçamos com esta turma. A comida, bem cheirosa, era servida em prato de barro. Os tachos ferviam com o caldo borbulhando. Chegou a minha vez. Dona Nem, que era a cozinheira, com uma concha feita de quenga de coco, retirava a  comida do tacho e colocava nos pratos. Feijão branco, carne de charque, farinha de mandioca e rapadura. Pronto! Eis, a refeição. Mas, que comida gostosa!? Dona  Nem  sabia  temperar ao gosto da região. Ela, de vez enquanto pegava a concha tamanho família e ia aos tachos; retirava um pouquinho do seu caldo, levava-o à boca para sentir o gosto e o resto despejava dentro do tacho. E assim ela ia temperando. E todo mundo ai comendo e gostando!

Almoçamos. Dez minutos de descanso ali mesmo ao sol quente de pelar. De volta ao trabalho. Ninguém parava um instante. A ordem era desligar quem embromasse. Mas, quem se atreveria? Todos precisavam do trabalho.

Às 17 horas e 30 minutos, Alfredo mandou o pessoal encerrar o trabalho daquele dia. Fomos jantar. Carne de charque assada na brasa da aroeira, farinha de mandioca e café, fora este o jantar.

Os cossacos não tinham lugar para se abrigar e naquele descampado dormiam mesmo no chão, tomados pela fadiga. Nem se banhavam, pois a água era escassa; só dava para beber  e cozinhar; assim mesmo era salobra.

No dia seguinte, os cossacos foram acordados com os gritos do cabo-de-turma Alfredo, que dizia:

“A barra já quebrou, cambada! É sinal de novo dia. Levantem-se! Vamos tomar café".

O tropeiro Bastião, que acordara há tempo, chamou-nos para ajudá-lo a colocar farelo para a sua tropa de burros, a qual também pegava três refeições: pela manhã, ao meio-dia e à noite.

O vento forte trazendo ainda a frieza da madrugada  zunia aos nossos ouvidos. Chegou a hora da refeição matinal. Quão cheiroso era o café de dona Nem. Tudo pronto. Não precisava dar ordem para os cossacos pegarem o café, pois às 7 horas era servida a refeição matinal. Logo, formou-se uma grande fila.  A  alimentação  era fraca: brote seco e café. Só! Os que iam terminando, corriam ao  barracão, em busca do seu material de trabalho que lá o guardara por determinação dos cabos de turmas.

Com a lista de suas turmas nas mãos, Alfredo iniciou  a chamada do pessoal:

n Turma 105:

n  Número um!...

n Pronto!!

n Número dois!...

n Pronto!!

E assim continuava, até que chegou ao último da turma número 106. Não faltou ninguém.  Este foi o nosso segundo dia e não houve mudança para os demais.

 

Volta para casa

 

D

ecorria uma semana que eu estava trabalhando na  construção do açude. Eis que chegou um novo tropeiro. Era Antônio Zuza, que morava nos arrebaldes da fazenda de padrinho  João Horácio. Sabendo que eu havia fugido, mandou avisar ao meu padrinho.

Passaram-se poucos dias. E, numa manhã, ainda, na hora do café, em frente ao barracão, parou um carro de passeio Ford 29, do qual desceu aquela senhora bem simpática. Era Maria, filha de João Horácio, que fora me buscar.

Carro naquela época causava novidade. Curiosos, os cossacos pararam. Até Alfredo - o cabo de turma - parou. Eu  procurei  fugir, porém, sem sucesso. Alguns cossacos, que    desconfiavam  de  que  eu   teria fugido de casa, seguraram-me e conduziram-me à presença de Maria, que me pegou pelo braço e não resisti, pois ela sempre me dedicara muito carinho. Levou-me de volta à casa de padrinho João.

Meu padrinho esperava-me no terreiro da casa, e ficou parado ao perceber a chegada do veículo, esperando que eu descesse. Ele, ao me vê, suspirou aliviado e  exclamou para madrinha Guilhermina que o acompanhava:

“Guilhermina, é ele!”

Maria desceu segurando no meu braço. Comigo estavam meus pertences - rede e roupas - empoeirados.

O velho aproximou-se de mim. Abraçou-me. Passou sua mão cheia de calos na minha cabeça, dizendo:

“Júlio, meu filho, não fuja mais de casa. Sua madrinha chorou de preocupação. Nancy chorou. Todos nós ficamos preocupados”.

 

Nova propriedade

 

N

ão se completavam oito dias do meu retorno à casa grande, quando numa manhã, antes que Zezinho terminasse a tiragem do leite, padrinho João desesperado com a seca, e a ração estocada se acabando, chamou madrinha Guilhermina.

n Guilhermina - disse ele - eu vou trocar de roupas. Vou apanhar o misto (caminhão de cabina dupla) que passará daqui a pouco na estrada de Campestre à Natal, e salto em Macaíba, onde  eu tenho um amigo dono de terras com quem arranjarei um cavalo e irei a um povoado chamado Vera Cruz, a fim de comprar um sítio que estar para vender. Temos aquelas economias guardadas no fundo do baú que darão para comprá-lo. É uma região de agreste com água e pasto para os animais. Você coloque duas parelhas de roupa, escova de dente, pasta dental, sabonete e meu par de alpargatas dentro daquela minha mala grande de viagem.

n E você vai tão ligeiro assim, João? - perguntou espantada madrinha Guilhermina.

n Eu vou agora mesmo, Guilhermina, antes que seja tarde demais - respondeu.

Padriho João tinha aquela mania de anunciar uma viagem  nos últimos instantes.

Pela altura do sol, não passava das 7 horas. Vindo de bem distante, ouvia-se a gaiata do caminhão misto, a qual soltava algumas notas musicais da canção Asa Branca, do cantor e compositor Luiz Gonzaga.

Ao ouvir o cantar da gaiata, padrinho João Horácio apavorou-se,  gritando:

“Guilhermina, me dê logo essa mala, senão eu vou perder o carro!! Ele já vem cantando”.

Madrinha Guilhermina correu levando a mala. Ele montou-se no cavalo relâmpago, de sua monta  preferida, saindo galopando até à estrada, comigo na garupa para  levar o animal de volta. Foram dois quilômetros vencidos velozmente. Relâmpago não dava trégua à moleza. O carro já era visto numa reta da estrada de barro vermelho, deixando  um imenso corredor de poeira.

Chegou o veículo. Apanhou-o.

Estava lotado!

E   eu retornei à  casa grande.

Agora, o cavalo caminhava lento. Não o fiz galopear.

Eu olhava aquele deserto desolado, que assustava um povo desvalido e  sem nenhuma esperança de chuva. Ou nenhum sinal dela. Caminhei devagar. Parecia que eu estava num mundo desconhecido distante de tudo e de todos. Parecia estar divagando. Fui observando as queimadas feitas com rumas de  xiquexique  para alimentar  o  gado  faminto; e dele, porém, até o povo comia aquele talo duro,  seco e sem gosto, para saciar a fome dos adultos e crianças cadavéricos que temiam que a morrinha do gado lhes atingisse também.

Dezenas de ossadas de animais formavam uma ornamentação horrorosa no chão varrido pelo vento, deixando a população desvairada. Era um contraste que deixava em pavorosa a propria natureza.

Continuei observando!...

Fui observando e lá se vinha o vento forte formando redemoinhos tempestuosos, que passavam se contorcendo e fazendo ziguezague, feitos uma minhoca na areia quente, levando consigo o resto que a seca  havia destruído.   

Parecia que tudo aquilo era puro e simplesmente um devaneio, se não fosse tão real.

Tão real quanto o era a fé daquele povo na imagem de São José. Que não deu ouvidos ao clamor do povo.

 

Retorno de padrinho João

 

P

adrinho João retornara na tarde do quarto dia, mas, como não era esperado, caminhou a pé os dois quilômetros. Cheio de alegria, ao chegar à porta da casa grande, gritou para madrinha Guilhermina:

n  Guilhermina!!!... Eu comprei um terreno que tem arisco para plantar feijão, mandioca, batata doce e inglesa, inhame e macaxeira. Tem muitos pés de caju, manga, côco e jaca.

n  E água?!... Tem? - perguntou madrinha Guilhermina pulando de alegria.

n  Água!? Sim, a água de beber é de Vera Cruz, e de gasto é do barreiro local, mas, está quase seco. Mas, Vera Cruz é bem pertinho.

n  E como é o nome do lugar?

n  É Pitombeira.

n  Quando a água do barreiro secar, onde o gado vai beber?

n  Em Vera Cruz.

n  Quanto custou o terreno?

n  Vinte mil contos de réis.

n  Quando é que nós vamos para lá?

n  Se Deus quiser, ainda este mês.

Naquela mesma semana, reunido com os seus filhos, padrinho João lhes comunicou haver comprado a propriedade, e como Zezinho era o mais velho ficaria tomando conta da fazenda do Uirapuru.

 

A mudança

 

P

ela madrugada de uma quarta-feira chegou o misto que fazia a linha Campestre à Natal. Estacionou no terreiro da casa grande. Meu padrinho chamou alguns moradores, a fim de ajudarem colocar os móveis em cima da carroceria do veículo e em seguida, chamou Osório e Zeca - seus  empregados de confiança - aos quais determinou:

“Osório e Compadre Zeca dêem ração bastante ao gado, às criações miúdas e aos demais animais. Amanhã, bem cedo, selem quatro cavalos para vocês, Júlio e Antônio. Compadre Zeca conhece todo o caminho até Pitombeira. Vocês não terão dificuldades. Levem bastante alimentação para vocês. Dêem ração ao rabenho na fazenda do meu velho amigo Apolinário, que você conhece, compadre Zeca. E fica às margens da estrada que vai para Pitombeira”.

Às 8 horas da manhã, o pessoal terminara de arrumar a troçada em cima do caminhão. Madrinha Guilhermina,  Sulina de compadre Zeca e suas duas filhas e seu filho Luiz embarcaram na cabine do veículo e partiram com destino à nova morada.

Iniciamos a caminhada. Zeca - como o fora determinado - seguia à frente como  guia. E, segundo ele, seriam dois ou três dias de viagem, sem alimentação para os animais. Nos cabaços levávamos água necessária para o nosso consumo. Os filhotes das criações miúdas  ficaram à espera da segunda carrada do misto para levá-los.

Deu meio-dia. Os animais estavam esbaforidos com o sol que torrava tudo.  Não existia nenhuma sombra para descansar por alguns minutos com os animais. Zeca, porém, que continuava seguindo à frente, reduziu um pouco as passadas do seu cavalo.

Sem desmontar, comemos alguns pedaços de carne com farinha e rapadura. Tomamos água quente dos cabaços. Apressamos os passos porque os animais não podiam passar mais de dois ou três dias sem comer e beber.

Anoiteceu e logo chegou a lua bem clara, que permitiu tangermos o rebanho até o entardecer da noite.

Chegamos a um lugar descampado e Zeca resolveu encurralar os animais no canto de umas cercas. Descemos dos cavalos e lhes retiramos as selas. Das  mochilas  tiramos  brotes,  carne  e  rapadura. E jantamos!... Zeca colocou milho nos bornais  dos nossos  cavalos,  enquanto o resto não tinha  nem o que ruminar.

Cansado, o gado lago deitou-se. Forramos o chão com umas esteiras de palhas de carnaúba. E deitamos. O rebanho estava quieto.  Osório, que se encontrava sentado sobre uma esteira, tinha um vício desgraçado. Ele pegou um pedaço de cigarro de fumo brejeiro - feito com palha de milho - que se encontrava colocado por trás da sua orelha esquerda. Retirou de sua mochila um artifício - como era conhecido um velho invento de fazer fogo; era uma ponta serrada de chifre de boi, cheia de algodão, tampa de cabaço furada ao centro, e com uma correia de couro cru fixada no furo. Ele destampou o tal artifício, à boca do qual colocou uma pedra chata do tamanho de uma caixa  de  fósforos - conhecida   como  fígado  de  galinha -,  e  sobre  a mesma pressionou uma lima velha de ferro com muita rapidez produzindo faíscas,  e  incendiou  o  algodão, com o qual acendeu  o cigarro.

Deu fortes baforadas. Deu fedorentas baforadas! Fumou-o todo. Encostou-se à sua sela e debruçando a cabeça, adormeceu.

Acordamos com Zeca nos chamando. A barra vinha quebrando. Os animais ficaram de pé. Selamos os cavalos e seguimos.

A paisagem começava a mudar de seca para verde. A terra ia mudando de caatinga para arisco. O vento não era tão rebelde como o era no sertão de terra  seca e descampada.

Retomamos a caminhada pegando ainda a aragem fresca do amanhecer. Deu meio-dia. O gado já não estava tão esbaforido como no dia anterior.

Findou o dia. Vem a noite bem fria com o vento menos bravio. Estávamos chegando à fazenda de Apolinário, que  era amigo de João Horácio, onde pernoitamos.

Era um homem alto e buchudo, de cor parda, que nos deu toda acolhida, inclusive ração e água para o rebanho que estava faminto. O rebanho se alimentou de capim verde, que não comia há tempo.

Com Apolinário não existia tristeza. Estava sempre rindo, cheio de vida. Mandou-nos tomar banho. Serviu-nos um farto jantar. E ao mesmo tempo determinou a dois empregados dar água e ração aos cavalos. Depois de uma longa conversa, armamos nossas redes no alpendre do casarão.

Às 4 horas da madrugada, Zeca levantou-se e nos chamou. Apolinário já estava acordado há muito tempo e ele mesmo preparou o café. E bem reforçado! Barrigas cheias, nos despedimos dele. Colocamos os animais na estrada. Zeca, que era mestre em aboiar, deu três aboios (cantos melancólicos para guiar o gado). Retomamos o caminho com destino à nova morada.

Meio-dia. O verde se tornara cada vez mais verde. Andamos sem dar descanso. Agora, os animais caminhavam à sombra dos grandes pés de árvores.

Chegou a tarde. E a noite.

Zeca, sempre à frente do rebanho, resolveu acampar. Agasalhamos o rebanho à beira de um rio, próximo a um poço no meio de monstruosos pés de oiticica, onde os animais beberam água e deitaram-se.  Estiramos as esteiras no chão de areia bem branca. Dominado pela fadiga, Antônio adormeceu rapidamente.

O silêncio daquela noite era quebrado pelas jias, que de dentro do poço de água escura, bradavam o seu cântico esquisito:

“Bum!... Bum!... Bum!..."

E o gado nem se mexia.

Fazia frio. Enrolei-me com um lençol. Zeca, que se deitara bem perto de Antônio, levantou-se apavorado com a catinga nojenta da fumaça infernal do cigarro de Osório.

“Qui diacho de fedor é esse!!!?" - reclamou.

Chegamos ao terceiro dia. E retomamos à caminhada no horário de sempre. Não tardou, chegamos a um povoado. Zeca nos disse que estávamos a poucos quilômetros de Pitombeira. Um cidadão bem vestido aproximou-se de Zeca, e indagou:

n As ovelhas são para vender?

n Não sinhô.

n Vão para onde?

n Vamos para Pitombeira – respondeu Osório.

n Já estão chegando. É daqui a quatro quilômetros.

n Muito obrigado e até logo – concluiu Osório.

Os animais andavam capengas. Prosseguimos na caminhada. Impaciente, disse Osório:

“Eu acho que chegamos. Zeca está se esquiando na sela!"

De uma estrada estreita, a menos de duzentos metros, estávamos chegando à casa grande e à sua frente, em pé, meu padrinho nos aguardava, impacientemente.

Tangemos o gado para um curral novo, que fora construído naqueles poucos dias e os animais miúdos para um chiqueiro, também novo, todos com muita ração.

Em terra e vida novas, era tudo diferente. Muito verde. O cheiro agradável da terra. O aroma gostoso dos cajueiros e mangueiras  que estavam cheios de flores e frutos. Que maravilha!

Tudo  era o presente que Deus estava dando ao velho João Horário, meu querido padrinho.

 

Na fazenda Pitombeira

 

L

uiz, filho de compadre Zeca, que era afilhado do meu padrinho João Horário, foi me ajudar nas obrigações diárias. A rotina, porém, em nada mudou. Padrinho João Horácio chamou Zeca, ao qual ordenou:

n  Compadre, amanhã, às 4 horas da madrugada, você venha aqui para ir com Júlio à Vera Cruz, que é para ele aprender o caminho e ir só.

n Mas, esse menino? Ele vai sozinho!?

n Sim, esse mesmo. Tem alguma coisa errada, compadre?

n  Não, meu compadre. Claro que não! Mas, é uma légua de distância e Júlio é uma criança!

n  È não, meu compadre; Júlio já é um homem.  Não troco ele por certos homens.

Zeca, que aprendera com o seu compadre João Horácio a chegar antes da hora, levantou-se às três e meia e foi ao cercado apanhar a égua malhada e o jumento roxinho. Colocou as cangalhas e quatro barris nos animais, e foi até à porta da casa de padrinho João.

n  Compadre!... Compadre!... Compadre!... É Zeca. Estar na hora.

n  Já vou, compadre. Júlio!... - emendou meu padrinho aos gritos.

n Inhô, padim!...  Gritei já pulando da rede.

Desarmei minha rede e calcei as alpargatas de rabicho. Padrinho João, que já se encontrava na sala,  conversava com Zeca enquanto acendia um candeeiro grande feito de zinco e pavio  grosso de algodão. Aproximei-me dos dois.

n Minha benção, padim!...

n Deus lhe faça feliz, meu filho.

n Podemos ir, compadre? - perguntou Zeca.

n Claro, compadre. Pode! Vão com Deus.

n Amém!! – respondeu Zeca.

Zeca montou-se no meio da carga da égua, e eu na do  jumento. E seguimos dentro da mata, por uma vereda estreita chega os ramos do mato roçavam nos barris. Zeca não dava uma palavra.  Não tardou, todavia, ouvirmos o cantar horroroso das corujas e o uivar das raposas, que não paravam de marcar presença,  passando sem parar de um lado para outro. A mãe-da- lua também marcou presença, porém, não se atrevendo como os dois últimos e preferiu ficar  de longe, com o seu arrastado cântico.

A barra ia quebrando, quando chegamos ao povoado de Vera Cruz. Seguimos a sua rua principal. Zeca entrou numa vereda, que lateralmente se limitava por duas cercas de arame farpado. Bem no pé de uma mata fechada e escura de arrepiar existia um grande poço com bastante água de vertente.

“É aqui” - disse Zeca.

Zeca saltou do animal. Aproximou-se do jumento querendo me tirar do meio da carga, mas pulei para a garupa do burro, e mais rapidamente para o chão, o qual nem me tocou. Cada um tirou os seus barris;  Zeca com um funil e uma lata os encheu. Depois, com a minha ajuda, colocou-os nos animais. Foi tudo muito rádido!

Andando mais lento, retornamos. O clima era gostoso diferente daquele que estorricava qualquer vida no sertão. Com aquele aroma suave que fluía das flores dos cajueiros, das mangueiras e outras árvores nos dava uma sensação de bem-estar, num convívio tranqüilo, que nos proporcionava a natureza.

Ouvimos o  sinal de que nos aproximávamos da casa do meu padrinho; foi o mugido da vaca asa branca no curral da casa grande, que todos as madrugadas, exatamente ao quebrar da barra, dava de dois ou três mugidos. Coisa de vaca!...

“Chegamos”! – disse Zeca.

Descarregamos os barris. Retiramos as cangalhas dos animais. E fui deixá-los no cercado de pastagem que ficava pertinho.

Padrinho João começara a tirar o leite das vacas, entretanto, não era bom tirador  diante do seu compadre Zeca; este foi ao curral feito de catanduba e mourão de pau d’arco, que substituía os de mororó do sertão, e assumiu o seu lugar de tirador-mor, enquanto padrinho João deixava o seu lugar-tenente.

Na casa de farinha à manual, chegavam os forneiro, prenseiro, moedores, tiradeira de goma,  raspadeiras de mandioca, peneradeira de massa e secadeira de crueira e goma.    Bem perto dali, num imenso roçado, os arrancadores de mandioca davam início ao seu trabalho.

Eu e Luiz de compadre Zeca fomos ao cercado. Encabrestamos quatro jumentos, nos quais colocamos cangalhas e caçoais. Pronto! Os animais estavam equipados.

 Nossa tarefa, a partir daquele dia, além das de rotina, era carregar mandioca para a casa de farinha no lombo dos animais.

Perto de uma hora da tarde a tarefa daquela manhã somava dez carregamentos. As raspadeiras, esparramadas ao redor daquela grande ruma de mandioca, não davam vencimento.

Escutei um grito:

“Ô,  Jú...li...o!!...”

Era padrinho João. Ele só me chamava arrastando as sílabas. Mas eu nem gritava respondendo. Eu saia calado. E se estivesse longe, saia correndo. E ele gritando:

“Ô,   Jú...li...o!!...”

Sai correndo da casa de farinha, e sem responder - como sempre. E ele gritando:

“Ô,  Jú...li...o!!..."

E  eu já por trás dele e bem pertinho, respondi:

“Inhô, pa...dim!!...”

Assustei-o! Virou-se para mim com uma cara de quem não gostara. Desculpei-me.

n Foi sem querer, padim!

n  Meu filho, quando eu lhe chamar, você me responda! Vá ao roçado e diga ao compadre Zeca que traga os trabalhadores para o almoço.

n Sim, sinhô, padim.

Àquela hora, Antônio forneiro - como o era conhecido Antônio de  Chico Guedes - preparava a sua quarta fornalha de farinha de primeira qualidade, que ia sendo armazenada em grandes sacas de palha de carnaúba, guardadas num dos imemsos quartos da casa grande.

 

A alegria dos agricultores

 

O

povo da redondeza estava felicíssimo com a boa  safra e o preço razoável. Os agricultores quando não faziam farinha, vendiam a mandioca para os donos das casas de farinha distantes. Os carregamentos aconteciam através dos animais, ou num caminhão Ford que chegara da capital, exclusivamente para pegar fretes dos agricultores.

Os produtores de castanha, fumo, inhame e farinha, semanalmente, vendiam a sua produção aos armazeneiros de Monte Alegre e  outras cidades vizinhas.

Padrinho João, que deixara o comércio de mangalhos, dedicou-se à criação de gado e à agricultura. Ótimo negócio para quem vivia num comércio agitado nas feiras livres do sertão.

Saindo de um lugar que fora devastado pela terrível seca, com saldos cruéis para o sertanejo, nós estávamos diante de uma nova realidade de vida. Muita fartura. Gente alegre, que aos fins de semana não lhe faltava diversões das mais variadas.

Além das festas dançantes com famosos sanfoneiros chegados da capital, aconteciam as festas folclóricas como bumba-meu-boi, pastoril e cantoria de violeiros.

Destas canções, a que mais levava alegria era a do  bumba-meu-boi. Seu corpo artístico se constituía de pessoas bem engraçadas. Era a alegria da garotada. De suas canções, alguns destaques interessantes.

Canção da burrinha:

“Minha burrinha como milho, como palha de arroz, o mau desta burrinha é que não pode com nós dois...”

Canção do jaraguá:

“Chegou, chegou, chegou o jaraguá, meu bichinho bonitinho, ele sabe vadiar...”

Meu padrinho não me proibia ir àquelas festas, desde que compadre Zeca fosse comigo. Ele me dava dinheiro e seguíamos - eu, Zeca e Luiz, seu filho. A gente não se demorava  porque  toda  madrugada, mesmo que fosse feriado, eu ia buscar água em Vera Cruz, sozinho, sem compadre Zeca ou seu filho Luiz. Sem relógio, fiquei habituado a acordar no frescor da madrugada, no primeiro relinchar dos jumentos, geralmente de três e meia para as quatro horas.

Levantava-me, sem acender o candeeiro, guiando-me pelas paredes ou no tato, abria a porta da frente e ia buscar um animal - jumento, burro-mulo ou égua -, no qual colocava cangalha e barris, e seguíamos – Deus, eu e o animal. Retornávamos antes do sair do sol. Às vezes nem compadre Zeca  havia  chegado para tirar o leite.

Na maioria das madrugadas, dava uma doideira nos jumentos e relinchavam  no transpor da meia-noite. Certo que  estaria na hora de sempre, eu ia buscar o animal. Com os pés descalços, no escuro, sem temer espinhos e picadas de cobras, pegava o animal no cercado. Retornava de Vera Cruz e nem sinal do dia amanhecer. Diversas madrugadas  meu padrinho não percebia nada – nem saída, nem chegada.

Completei onze anos de idade. Eu realizava todos os trabalhos pesados, apesar de manter um corpo franzino, porém, com alimentação bastante e de boa qualidade. Eu media forças com os adolescentes. Disputava mesmo era com os mais idosos!

Minha madrinha, apesar de tudo, tinha alguns cuidados para comigo. A qual sempre mandava tirar leite das burras e mandava que eu o bebesse. Ela dizia:

“Tome esse  leite para você não ficar enfraquecido.”

Enfraquecido, no dizer de madrinha Guilhermina, seria para evitar doença no pulmão.

 

Fui alfabetizado

 

F

oi pelos onze anos de idade que resolvi aprender a ler, pois, meu padrinho se preocupava muito para me dar trabalho, porém, não me educava para uma vida diferente. Eu lhe era o burro de carga e sela, como os seus próprios moradores e trabalhadores o diziam. Quando pedi para aprender as primeiras lições na Cartilha de ABC, meu padrinho não fez questão para me ensinar.

Com aquela Cartilha ou Carta de ABC, todas as noites, ele me ensinava  meia hora. Primeiro ensinou-me as letras, é lógico, prosseguindo juntando-as e pronunciando as palavras.

Aprendi rápido. Não tardei, contudo, a soletrar, e arrastando a voz, pronunciar as palavras. Fui me esforçando e muito rápido estava lendo desembaraçado, que causava admiração aos trabalhares e ao próprio João Horácio, que se sentia orgulhoso. Também aprendi a tabuada com as quatro operações.  Luiz de compadre Zeca seguiu o meu exemplo, e pediu para meu padrinho lhe ensinar também. Ensinou até melhor do que me ensinara. Porém, Luiz não era bom de cabeça para com as letras.

Os moradores e vizinhos se impressionavam com a rapidez que eu lia. Passei a ler tudo que aparecia na minha frente. Páginas de livros e de revistas encontradas dentro de casa ou nos monturos. Padrinho João sentia-se vaidoso porque me ensinara a ler.

 

A festa de São Francisco

E

 

m 4 de outubro de 1952, estando bem equilibrado financeiramente, padrinho João Horácio, que era devoto de São Francisco, fez a tradicional festa de seu santo protetor, que há  três anos não festejava.

A festa tinha início com a parte religiosa. Um altar instalado num canto da sala, dois lampiões a gás a iluminavam. No altar cheio de velas estava a imagem de São Francisco, em gesso. Todos ajoelhados rezavam meia hora. E ofereciam suas rezas àquela imagem de gesso, que não ouvia, que não falava, que não andava, que não via. Nada sentia!...Nada fazia!... Nem se mexia!

A presença maciça das pessoas, que compareciam à festa, causava surpresa ao meu padrinho João, que jamais contara com tanta gente. A festa atraia gente da redondeza, dos municípios de Monte Alegre, Lagoa de Pedras, do povoado de Vera Cruz e outros.

Depois das rezas ao santo, seguiam-se as atrações como pastoril, bumba-meu-boi e cantorias. A atração principal era Chico Traíra - o melhor cantador de viola do Nordeste. Várias barracas ocupavam parte do terreiro, nas quais se vendiam de tudo: genebra, vinho de jurubeba e comidas regionais. Cachaça, nem pensar!...

Osório, para lá de melado, abraçou-se com Zeca - que também estava quente - e disse:

“Qui festa boa, Zeca! Tá boa pra diacho, homi!...”

Eu e Luiz de compadre Zeca estávamos conversando um pouco distante da cantoria, quando Zé de Antônio da farinha, que tinha  inveja daquela minha amizade com Luiz de compadre Zeca, deu-me um murro no estômago. Eu, que não desacatava ninguém, mas não levava desaforo, revidei entrando em luta corporal com ele que levou a pior. O pai do menino procurou meu padrinho.

“Seu João, o sinhô dê um jeito no seu afilhado que ele bateu no meu filho"!

Fiquei por trás das barracas, escutando a queixa. No meio da festa mesma, meu padrinho gritou:

“Ô, Jú...li...o!...”

Meu padrinho detestava mentira e sabia que eu nunca mentira para ele. Sai bem ligeiro. Pertinho dele, quase não abrindo a boca, com o coração batendo fortemente “tuc...tuc...tuc...”, gritei:

n Inhô, padim!!!...

n Júlio!... Conte a verdade, meu filho!! Você começou a briga com esse menino?

n Não sinhô, padim! Foi ele!...

n Eu não posso  fazer nada; Júlio não  mente.

 - concluiu padrinho João.

 

A chegada de Manoel

 

N

 

o inverno de 1953, com chuvas regulares, num domingo, à tarde, padrinho João conversava com compadre Zeca no alpendre da casa de farinha. Vem chegando um rapaz dos seus dezoito anos, alto e moreno, saudando-os:

n Boa tarde!

n Boa tarde - responderam.

n É aqui que mora  seu João Horácio?

n É sim - respondeu padrinho João.

n Ele tá?

n Estar, sim! Sou eu.

n  Minha benção, meu padim!... Deus te abençoe! E quem é você?

n Eu sou Manoel, seu afilhado, filho de Tião de Rosa.

n  Você é Manoel!? Mas como está grande!!... Cadê compadre Tião?

n Papai vai bem.

n E você  anda fazendo o quê?

n Eu vim procurar serviço por aqui.

n E eu tenho serviço. Se você tem mesmo coragem para trabalhar, meu afilhado, nunca mais lhe faltará serviço.

n Eu tenho, meu padim – concluiu Manoel.

Padrinho João chamou madrinha Guilhermina que se encontrava na cozinha:

n Ô, Gui...lher...mi...na!!...

n Diga, João! – respondeu gritando.

n  Guilhermina, vanha cá!

Madrinha Guilhermina aproximou-se:

n  É o quê?

n  Guilhermina, este rapaz é nosso afilhado.

n  É?!!... Ele é filho de quem?

n  Ele é filho de Tião de Rosa, de São José de Campestre.

n Ai, é!? Deus te abençoe. Como  vai a comadre?

n Mamãe vai bem, minha madinha.

n  Guilhermina bote coalhada para ele, que deve estar com fome - determinou padrinho João.

Manoel era acanhado. Moreno com ossos salientes no rosto. Olhava por baixo e todo desconfiado. Depois da coalhada, padrinho João levou-o a um dos quartos da casa, ao qual disse:

n  Este é o seu quarto. O de Júlio é aquele ao lado – apontado com o dedo indicador.

n Quem é Júlio, meu padim?

n É meu afilhado e filho de criação.

Na segunda-feira, Manoel foi trabalhar com os homens do eito, limpando mato na lavoura.

Ele não tardou a enciumar-se com o tratamento que padrinho João me dedicava. Mais doente de ciúme ficou quando viu a amizade da vizinhança comigo.

Só madrinha Guilhermina que não me dava atenção e continuava magoada com a ida de André à capital pernambucana. E sempre estava me dando muxicões na cabeça, sem, contudo, respeitar a presença das pessoas de fora. E eu saia pulando com as mãos na cabeça e chorando. Manoel ficava me xingando, feliz da vida. Este só me olhava irado. Sua raiva aumentou mais quando um certo dia minha madrinha me surrou, e padrinho João ia chegando, asseverando-lhe:

n Guilhermina, você sabe que eu não quero que você, nem ninguém, bata neste menino. Se ele for embora, quem é que vai me ajudar?

n Eu ajudo, padim – respondeu Manoel, cuspindo por entre os dentes.

n Você!? Você não faz a metade. Júlio já é um homem. E um homem de vergonha.

Luiz de compadre Zeca chegara para almoçar conosco. Sentamos à mesa. E almoçamos sem a presença de madrinha Guilhermina que ficara chateada. Durante a refeição, Manoel não se cansava de encarar-me fazendo gestos de quem gostara da surra que sofri.

Deixamos a mesa. Padrinho João determinou que eu e Manoel fôssemos cavar vários buracos para uma cerca que seria construída ao lado do curral, enquanto ele e Luiz de compadre Zeca iam à casa de farinha.

 

 

 

 

A expulsão de Manoel

 

 

M

anoel ia cavando os buracos e eu retirando a areia. Sem mais nem menos, ele empurrou-me por cima dos pés de bananas, e quando fui me aprumando, jogou-me um soco nos lábios, que sangrou muito. Padrinho João, que retornara da casa de farinha, viu-me todo cheio de sangue.

n O que é isto, Júlio?perguntou-me com profundo espanto.

n Foi Mané, padim!.. – respondi cuspindo sangue.

n  Olha rapaz!!... - disse ele irado - neste menino aqui ninguém bate, a não ser eu. E assim mesmo nunca bato nele. Você errou muito. Por isso, não lhe vou perdoar. Solte essa chibanca, que eu vou lhe pagar os dias que você trabalhou. Pegue o que é seu e vá embora, e nunca mais volte aqui.

n  Eu não tenho culpa, padim. Foi  ele que começou - respondeu olhando por baixo.

n  É mentira sua, eu sei quem é Júlio. Não quero você mais aqui. E venha cá receber o seu dinheiro.

Manoel pegou o que lhe pertencia, recebeu o pagamento e rumou novo destino. Só Deus sabe que rumo tomou.

Padrinho João se transformava numa fera se ouvisse alguém me dirigir qualquer ofensa. Imagine como foi a sua reação ao ver-me cheio de sangue porque fui espancado!

Naquela época, como nunca, eu lhe seria uma jóia preciosa. Com os filhos morando distante, via-me como a única pessoa de sua  mais absoluta confiança que poderia contar, pois eu era a silhueta específica da sua própria imagem de homem íntegro e respeitado.

Há muito que ele não me mandava fazer mais nada, isto porque tudo já estava no automático. Tudo era feito com perfeição, sem haver nenhuma reprovação de sua parte. O mesmo, porém, não acontecia com minha madrinha - que Deus a tenha num bom lugar.

 

A verdade sobre meus pais

 

C

 

ompadre Zeca vem chegando. Chamou padrinho João para o alpendre da casa. Conversavam, não sabendo o quê, fui me esconder por trás da porta da frente, a fim de escutar a conversa dos dois.

n  É,  compadre João!... – dizia Zeca - o menino é esperto mesmo. O sinhô acredita que a maioria dos trabalhadores não consegue acompanhar ele no eito!? E ele nem se cansa.

n  Compadre, eu tenho um homem dentro de casa. Ele está me dando o prazer que André não me deu.

n  Compadre João, o sinhô nunca teve notícias dos pais dele não?

n  Quase toda sexta-feira eu me avistava com compadre Antônio na feira de Campestre. Mas, eu deixei de ir àquela feira!!...

n Quem é esse Antônio, compadre?

n É o pai de Júlio.

n Ele perguntava pelo filho?

n Perguntava nada, compadre!...

n  Mas, compadre João, ele sabia que o filho estava com o sinhô.

n Sabia, sim.

n  Que diacho de pai é esse, meu compadre!!? E a mãe dele, o sinhô tem visto?

n Não. Só tive contato com ela no dia do batizado.

n Compadre, por que foi que abandonaram o filho?

n  Compadre, é uma história complicada, mas eu vou lhe contar. Compadre Antônio era casado com Isabel. Pelo que consta, eles brigavam direto. Moravam em Serra de São Bento, onde reside a família de ambos. Eles tinham seis filhos, sendo Júlio o mais novo. As brigas não paravam, até que deu em separação. Eles deram os filhos aos parentes. Júlio tinha quatro anos. Comadre Isabel ficou com Júlio e foi para Natal, mas voltou à Serra de São Bento. O menino não era bem tratado. A mãe não reunia condições para criá-lo. Foi quando apareceu Francisco, irmão de Isabel, que levou o Júlio para a companhia dele. Chegou ao meu conhecimento que o menino sofria maltratos. E eu mandei buscá-lo.

Escutei, atentamente, aquela história. Revoltado com o que ouvira, sai correndo e fui chorar dentro da cocheira dos cavalos, de onde escutei minha madrinha chamando-me:

“Júlio!... Venha cá...”

De onde eu estava, acelerei os passos e gritei pertinho dela:

n Pronto, madinha!!

n  Onde você estava, menino, que eu te chamei e não me respondeu?

n Eu estava na cocheira, madinha. 

n Na cocheira, que nada menino!!...

Minha madrinha mal fechou a boca, aplicou-me diversos cocorotes (pancadas com os nós dos dedos) na cabeça. Corri chorando, quando meu padrinho apareceu:

n  Ô Gui...lher...mi...na!? O que foi que ele fez de errado? Hein, Guilhermina!?

n Você nunca me dar razão - defendeu-se.

n  Não é bem assim, Guilhermina!... Júlio já está um rapaz.

Compadre Zeca, que continuava no alpendre, levantou-se e caminhou à sala de jantar, na qual se encontrava o casal.

n Compadre, eu já vou buscar o capim.

n Compadre Zeca, leve o Júlio com você.

n Sim, compadre! Júlio, vamos!... – emendou.

Botamos cangalhas e cambitos em três jumentos e fomos ao capinzal da vazante. Zeca usava uma serra para o capim verde, e eu um facão para o capim que estava quase seco. Notei que Zeca se preocupava com alguma coisa.

n Você tem o quê, Zeca? - perguntei.

n Nada! Não é nada!...

Carregamos os animais. Logo, já estávamos de volta. Fomos cortar miudinho todo o capim, colocando-o na cocheira, que seria a ração da noite das vacas leiteiras.

Padrinho João tocou o búzio chamando os homens que trabalhavam próximo à casa da fazenda, pois estava na hora do almoço.

Soltei o facão e fui correndo deixar a comida dos trabalhadores nos roçados distantes, onde lá também trabalhavam Luiz e Antônio de compadre Zeca. Não me demorei, pois eu não me demorava em lugar nenhum sem está fazendo alguma coisa.

Compadre Zeca continuava cortando o capim. Ajudei-o na conclusão do trabalho. Padrinho João chegara da casa de farinha junto com uns homens estranhos naquela localidade. Eram os mecânicos que foram montar um motor novo para moer mandioca, substituindo a força muscular dos homens. Ele estava fazendo uma reforma geral na casa de farinha, aumentando o forno com capacidade para dois forneiros e mais uma prensa.

Pela posição do sol, pendia das 4 da tarde. Eu e Zeca nos preparamos e fomos buscar o gado. Bom na montada, que causava inveja ao próprio Zeca, coloquei a sela no cavalo pintado, que me conhecia de longe e me cheirava quando eu o alisava. Pintado cismava até do vento. Nem padrinho João se atrevia a montar nele. Nem Zeca! Comigo, porém, era um cordeiro. Puxei a rédea do animal e ele saiu esquipando, que, aliás, igual não existia na redondeza. Compadre Zeca seguia-me  galopando no seu cavalo de cavalgada cotidiana. Logo, deixou-me na poeira, tomando-me a dianteira. Folguei e balancei a rédea do meu cavalo, o qual disparou e velozmente passou à frente do outro cavalo, deixando-o bem na retaguarda.

Com o sol já desaparecendo, penetramos na mata fechada. Pintado se agachava  livrando-se dos galhos baixos. E eu me livrava  também. Finalmente  saímos  num  grande descampado, onde o gado estava pastando.

Zeca deu um forte aboio, que igual a ele não existia naquela região. Arrepiei-me todo! Era avizando que estava na hora do rebanho se recolher ao seu curral para o repouso noturno.  Os cavalos ficaram de orelhas em pé. As vacas levantaram as cabeças dando a entender aquela mensagem,  e o touro -  o Boi-Zebú - levantou a sua cabeça bem alta demonstrando que ele seria o líder do rebanho. E o era. Zeca riscou o seu cavalo. Esquiou-se na sela e correu a vista no gado. Viu que estava tudo certo. Esporou o  cavalo, que suspendeu as duas patas dianteiras. Deu-lhe rédea. Aboiando, circundou o gado, tangendo-o com destino ao curral da fazenda Pitombeira.

 

Mais uma decepção

 

 

E

ra setembro de 1953. Compadre Zeca e Osório haviam tirado o leite das vacas. As esposas dos moradores apanhavam o seu leite que padrinho João lhes dava de acordo com o número de filhos. A produção do leite aumentara satisfatoriamente. Maria, esposa de Osório, trabalhava no feitio de queijo e manteiga, que eram vendidos semanalmente a Dedé de dona Tereza, que os levava para o dono de um armazém em Macaíba.

Naquele ano, foi excelente a produção agrícola. Meu padrinho fazia a sua primeira grande colheita de algodão. As esposas dos moradores ganhavam pelo que produziam na apanha do algodão. O armazém que fora construído por padrinho João, estava superlotado. E, com as sacas cheias de farinha, não existiam mais espaços também nos seis quartos da casa grande.

A casa de farinha continuava moendo para os vizinhos e moradores da fazenda pitombeira. De cada dez cuias de dez litros, duas eram para padrinho João.

A última farinhada foi a de compadre Zeca. À noite do último dia, Zeca e padrinho João, sentados no terreiro da casa de farinha, conversavam sobre a fartura daquele ano. De repente, mudaram de assunto. Eu, bem perto deles, sentado num tronco de cajueiro, fiquei escutando o novo assunto.

n  Compadre Zeca, fazia muito tempo que eu não ia a Campestre. Sabe quem eu encontrei por lá?

n Sei não, compadre. Quem foi?

n A mãe de Júlio!!

n E foi compadre!? E ela perguntou pelo filho?

n Perguntou. Disse-me que qualquer dia vinha aqui.

Ouvindo aquela conversa, criei mais revolta. Comecei a pensar:

“Eu tenho pai e mãe, e vivo sofrendo pela casa dos outros trabalhando  feito um  animal. Sem uma mãe para me acariciar, beijar-me, como eu vejo todas as mães fazerem com os seus filhos...”

Com a cabeça cheia de interrogações, ouvi madrinha Guilhermina me chamar. Mas, fiquei calado e corri para perto dela, pois eu só respondia bem de cima da pessoa. Ela chamou-me outra vez:

n Júlio!!...

n Inhora, madrinha!... - respondi por trás dela.

n Como é que eu lhe chamo e você vem calado e grita no pé do meu ouvido. Eu lhe dou uns bofetes!...

Tornava-me mais rebelde a maneira pela qual madrinha  Guilhermina me tratava. E mais decepcionado com a vida. Ela insistia e não se entendia mesmo comigo.

 

 

 

Estória de assombração

 

 

A

pesar da grande fartura, a corrida em busca de água era indispensável, pois o inverno daquele ano foi bom para a lavoura, mas não o foi para o açude local. Recomecei minha penitência acordando às altas horas da madrugada, indo buscar água em Vera Cruz.

Uma certa madrugada fui pegar a égua malhada que era ligeira e arisca aos estranhos, na qual eu iria buscar água naquela madrugada. O animal, que se encontrava amarrado, conseguira arrancar a corda e quando me viu saiu em disparada. Eu perseguia a égua, querendo pegar na ponta da corda, mas, nada! Lutei bastante tempo. Finalmente, consegui dominá-la. Coloquei-lhe a cangalha e os barris. Montei no meio da carga e segui, como sempre, sozinho.

Logo que a égua afastou-se de casa, começou a assustar-se. Fiquei com medo. Falavam  de   um juazeiro velho que cobria a estrada para Vera Cruz, onde diziam escutar vozes, gemidos e ventos fortes. Falavam de um foguinho azul que andava sobre as árvores, que depois descobri que aquele foguinho tinho o nome de fogo-fátuo. E ainda falavam de um corpo sem cabeça que aparecia à beira do olheiro em Vera Cruz, onde a gente apanhava água.

Com tanta conversa de mal-assombro, comecei a tremer de medo. Montado, parecia que eu estava sendo arrastado.  E ia voando. Fechei os olhos e tapei os ouvidos ao passar por baixo do juazeiro. No olheiro, enchendo os  barris, parecia está vendo o tal corpo sem cabeça.

Olhava para todos os lados. Olhava para a mata fechada que ficava bem próximo ao olheiro, só vi o pisca-pisca dos pirilampos,  chega fervilhava. E a égua continuava assustada até retornar para casa, e ainda, escuro sem sinal do amanhecer. Só muito depois é que surgiu a aurora junto com o quebrar da barra.

No curral, nem uma vaca se mexia. Tudo calmo. Ouvia-se, apenas, o uivar das raposas que rondavam a casa querendo pegar as galinhas agasalhadas no poleiro, para a sua refeição matinal. Mas as galinhas, que não eram bobas, perceberam a presença das raposas e lançaram os seus pedidos de socorro carcarejando: “Coro-cocó!... Coro-cocó!... ”

Elas acordaram os perus, que gluginejaram bem alto: “gulú...gulú!... gulú...gulú...gulú!...”

As raposas, não querendo esperar por tempo ruim, saíram em retirada e ganharam refúgio dentro do roçado de mandioca.

Amarrei a égua no cercado. Corri para casa. Empurrei a porta da frente, que se encontrava encostada. Fui, mesmo no escuro; armei a rede e deitei-me, silenciosamente. Cobri-me dos pés à cabeça. Mas parecia está vivenciando toda aquela estória de assombração. Aos meus ouvidos escutava o ufar do animal assustado. Não dormi mais.

Com os olhos fixados à telha, vi que o dia estava chegando. Fui tomado de susto, ao escutar os gritos de padrinho João.

n Jú...li...o!!... Ô Jú...li...o!!..

n Inhô, padim!...

n Jú...li...o!...  O sol já vai sair, Júlio. E você dormindo!?

n Oxente, padim!!... Eu já fui buscar água!!

n Menino mentiroso, agora você deu para mentir!?

n Vá olhar padim! Os barris tão cheios!...

Levantei-me. Vi que padrinho João, com um lampião na mão esquerda, fora verificar.  Quando se virou, viu-me bem perto dele. Sua face ficou pálida. Ele duvidara da minha palavra e  ficara arrependido, todavia, por ser orgulhoso, não sabia pedir desculpas ou perdão, mas ficou estremecido por dentro.

 

 

Visita de minha mãe

 

 

J

á no por-do-sol, compadre Zeca, seu filho Luiz e eu estávamos no curral separando os bezerros das vacas leiteiras, quando vem chegando Maria, irmã de Zeca por parte de pai.

“Júlio, dona Guilhermina tá lhe chamando.”

Deixei o serviço e fui correndo sem desperdício de tempo, pois, minha madrinha sempre estava catando motivos para me bater. Encontrei minha madrinha na cozinha, conversando com uma mulher magra, branca, de estatura média, e uma mocinha, também da mesma cor.

n Mim chamou, madinha!?...

n  Júlio, esta mulher aqui é sua mãe, comadre Isabel. Esta menina é Belinha, sua irmã. Peça a benção a sua mãe - ordenou.

Eu que já estava prevenido sobre a chegada de minha mãe, que alimentava cada vez mais uma grande revolta dentro de  mim, parei diante delas e calado. Fitei-as. Minha mãe tentou chegar junto de mim erguendo os braços, querendo me abraçar, exclamando:

“Meu filho!!”

Não encontrei pureza em suas palavras. Vi que nos seus olhos não estava expressando o sentimento de mãe. Vi uma mãe que me abandonara quando eu mais precisava des seus carinhos. De tudo quanto uma criança necessitava, eu não tinha. Não tive uma afetuosa mão que  me acariciasse. Ou um doce seio que minha cabeça deitasse. Infelizmente, foi esta a imagem que desenhei daquela mulher que se dizia ser minha mãe. Que me abandonara. Que me deixara nas escuras veredas da vida - sem os carinhos e a indispensável proteção de mãe.

Ela, contudo, com os braços abertos, avançava em minha direção querendo me abraçar. Eu, porém, não a deixei. Fiz meia volta. Dei-lhe as costas. Corri para distante. Refugiei-me dentro das bananeiras, e de  lá fiquei observando a movimentação da casa, do terreiro, e do curral.

Compadre Zeca e Luiz, que haviam terminado o trabalho no curral, conversavam no terreiro a espera de padrinho João.

Chegou a noite. À hora do jantar, fiquei observando tudo pela brecha da porta. Terminou  o  jantar. Vi que  padrinho  João  ia para o terreiro. Sai correndo e voltei ao mesmo local nas bananeiras. Ele começou a gritar:

“Ô Jú...li...o!!... Ô Jú...li...o!!...”

Gritou mais de uma hora. Impaciente, pegou uma lanterna e saiu focando entre as bananeiras. Corri e fui me esconder dentro da cocheira dos cavalos.

Naquela noite padrinho João não foi fazer suas visitas noturnas às residências dos moradores, como de costume. Vem a madrugada. E não dormi. O jumento relinchou dando sinal de que era madrugada. Fui pegar a égua e fiz mais um carregamento d’água antes que acordasse alguém. Quando compadre Zeca chegou para tirar o leite, eu já havia deixado o animal no cercado. Escondi-me no sítio de cajueiro e mangueira. O meu café da manhã foi caju e manga.

De cima de uma mangueira bem alta, eu observava todo o movimento ao redor da casa. Vi quando minha mãe e Belinha, logo cedo, deixaram a casa de padrinho João e foram embora. Fiquei observando-as até desaparecerem de minha vista.

Não consegui me aproximar da mulher que me gerou, mas não me criou. Que me amamentou, mas não me conservou junto de si. Que me entregou ao mais cruel destino, submetido a uma vida de sofremento e humilhação. Mas com a passar dos tempos, eu me arrependi de tê-la feito sofrer.  Achei que ela sofreu com a rejeição que lhe dei.

Oh, meu Deus! Quem me dera se eu podesse voltar no tempo.

Na casa de padrinho João e na casa de farinha só se falava sobre o meu comportamento. Desconfiado e de cabeça baixa, fui tomando chegada!... Chegada!... Padrinho João, Zeca e o senhor Tomaz falavam sobre eu e minha mãe.

n  Eu esperava isso mesmo. Eu conheço quem é meu afilhado. Durante todo esse tempo ele nunca falou sobre nome nenhum da família. Nunca me perguntou de onde veio, quem eram seus pais, e se tinha irmãos. Quando ele não tem o que fazer, fica calado num canto e quando a gente olha em sua direção, ele baixa a cabeça.

n  Compadre, só faz medo se ele se revoltar - disse Zeca.

n  Não. Ele não vai fazer isso, não. Júlio é um menino bom - interviu Tomaz.

Sulina, esposa de compadre Zeca, vem chegando e comenta com madrinha Guilhermina, que assistia aquela conversa:

n Comadre, a mãe de Júlio disse alguma coisa?

n Não comadre, ela chorou muito.

n  Mas, comadre será que ela não vai amaldiçoar o filho, não? Por que o povo fala que a mãe pode amaldiçoar o filho!

n Que é isso, comadre!? Ninguém faz isto, não!

n  Compadre, o menino nem foi buscar água? - perguntou compadre Zeca - retomando a conversa.

n  Ah, compadre! Quando a gente acordou os barrís estavam cheios e o animal amarrado no cercado.

n  Seu João - disse Tomaz - o sinhô deve ter orgulho do filho que tem.

n  É verdade. Nunca vi tanta disposição. Ele nunca fez cara feia para nada!

 

Ano de muita fartura

 

E

 

ra 1954. As experiências dos idosos indicavam que o inverno seria bom. A terceira semana do mês de março começou com chuva. Foi logo depois do meio-dia e entrou pela noite. O travão dava cada estampido que parecia até que o mundo ia desabar. Os relâmpagos cortando as nuvens deixavam a noite clara repentinamente.

Chegou o novo dia e continuava chovendo. Os moradores da fazenda pulavam e cantavam de alegria com a chegada da chuva. Zeca, enrolado numa capa, tirava o leite.

Luiz de compadre Zeca e Chico de Joana, este também morador da fazenda Pitombeira, chegaram correndo debaixo de um forte temporal, os quais todas as manhãs ajudavam Zeca no curral, e foram até ao alpendre da casa grande. Chico gritou para meu padrinho:

n Seu João!... Seu  João!...

n O que é homem!? Por que está tão aflito?

n  É urgente, seu João!...

n É urgente, o quê? Diga, homem.

n  É o açude que está estoura, não estoura. A água vai lavar a parede e o sangradouro não dar vencimento.

Meu padrinho mandou chamar, urgente, os homens da redondeza aos quais  distribuiu  pás,  picaretas e enxadas. Foram ao açude, que, de fato, estava ameaçando estourar. Deram início ao trabalho de alargamento do sangradouro. Todo mundo entrou na luta. Homens, mulheres e meninos. E chovia sem parar. Corria perigo mesmo! Chico de dona Joana, gritava:

“Depressa, pessoal! A água está lava não lava. Tem menos de meio palmo para lavar o paredão”.

Debaixo daquela chuva, o pessoal trabalhava com muita disposição. Todos os moradores da redondeza, ao tomarem conhecimento sobre o perigo do açude, correram para lá conduzindo ferramentas, a fim de ajudar.

O temporal passara depois do meio dia. Apenas chuviscando. Os trabalhos de alargamento estavam concluídos.

A noite, toda viçosa, foi se aproximando e ocupou o acento do dia, o qual se despidiu com chuva, homenageando-a com relâmpagos e trovoadas.

Na sala da casa grande, padrinho João conversava com sua comadre Sulina, enquanto compadre Zeca terminava os trabalhos agasalhando as vacas e os bezerros no curral.

A cisterna enchera na segunda noite, a qual me daria tranqüilidade, enquanto tinha água, evitando aquele trabalho penoso nas madrugadas.

Apois três dias chovendo, seguiu-se uma semana de chuva fina e intermitente; logo no primeiro dia de estiagem, padrinho João convocou homens, mulheres e adolescentes para iniciarem a plantão de feijão e milho. Os homens abriam as covas, enquanto os demais - mulheres e adolescentes - plantavam as sementes.

Foram cinco dias só para semear. Na semana seguinte, a chuva tomou corpo com branda intensidade e não chegou a atrapalhar a germinação das sementes.

Na segunda semana, noutro terreno, com os mesmos trabalhadores, padrinho João iniciou a plantação de maniva de mandioca e mudas de inhame, além de outros cultivos de pequena escala.

A lavoura foi crescendo toda igual.

Padrinho João dobrara o número de trabalhadores no eito; foi preciso chamar gente da vizinhança, pois tanto a lavoura quanto o mato cresciam com rapidez, e sem parar de chover o mato arrancado não morria.

Com noventa dias tinha feijão e milho verde para comer.

Era só alegria!

Como Deus é maravilhoso!

 

 

 

As festas de São João

 

 

N

a segunda semana do mês de junho, o velho João Horário, a exemplo dos demais anos, começou os preparativos para a festa de São João. Foi à Natal, capital do Estado, comprar fogos de artifício, balões e bandeiras para enfeitarem a casa grande e seu terreiro. Tudo para os festejos juninos.

À véspera do dia de São João, Rosemiro chegou do Recife, dirigindo o seu carro preto, de marca Ford 29, de duas bancadas, sendo grande novidade para o povo local, pois naquelas bandas raramente passava um carro.

Dona Sulina tomava conta das mulheres e adolescentes que apanhavam feijão de arranca, que estando maduro nascia nas vagens porque a chuva não dava moleza.

Logo bem cedo, Zeca e Luiz prepararam a fogueira com lenha molhada,  que  media  dois  metros  e  meio  de largura. Foi um trabalhão só para montá-la,  que, aliás, era a maior da redondeza.

Às 18:00 horas, colocaram fogo; utilizaram dois litros de querosene, e quase que não acendiam.

 Solidárias  com São João, as nuvens cobriram a passagem da claridade da lua e das estrelas para dar lugar à claridade das fogueiras. Padrinho João deixou no alpendre uma braçada enorme de foguetões, e gritou:

n Compadre Zeca, taqui os fogos!

n  Já vou, compadre. Estou terminando de acender a fogueira. Ô diacho pra dar trabalho!!... – esbravejou compadre Zeca.

Na conzinha, nuns tachos grande no fogão de lenha, Sulina e madrinha Guilhermina preparavam pamonha e canjica.

No alpendre, aquele monte de milho verde para assar nos brazeiros da fogueira.

Começaram a chegar os convidados. Trabalhadores e suas famílias. Vizinhos mais próximos. Não faltou ninguém. Meu padrinho tinha prestígio e era respeitado por quem o conhecia. Deveras, era um homem de vergonha.

Quem chegara também para os festejos em Pitombeira, foi o cabo de polícia Manu, filho de Chico Preto, que era viciado na pinga e gostava de arruaças, mas quando ficava bêbado não passava nem por perto da fazenda Pitombeira, pois ele respeitava a família de padrinho João.

Manu foi direto à casa da fazenda. Sem ter bebido, mas com uma garrafa de cachaça na mão, procurou padrinho João, a quem pediu:

“Guarde aí, seu João. Quando eu for embora, vou beber bem longe daqui!”

Lá pelas nove da noite, aquela grande fogueira se reduzira em brasas. Dona Sulina, Maria, irmã de compadre Zeca, assavam milho verde naquele monstruoso braseiro.

Seguiram-se as brincadeiras feitas à luz das fogueiras de São João: o casamento e o batismo. Quem iniciou foi Luiz de compadre Zeca que convidou Cícera Cassiano para ser sua madrinha de fogueira. Colocaram no chão dois toros acesos da fogueira. Cícera  segurou a mão direita de Luiz, deixando os dois toros entre eles, começou o cerimonial:

n  São João disse e São Pedro confirmou, que você fosse minha madinha, que Jesus Cristo mandou.

n  São João disse e São Pedro confirmou, que você  fosse meu afiado, que Jesus Cristo mandou.

n  Minha benção, minha madinha!...

n  Deus te abençoe, meu afiado.

 

 

 

 

A maior riqueza da década

 

C

 

hegou o período da farinhada. A casa de farinha passou a moer sem parar - dia e noite - com três turmas, que trabalhavam com intervalo só para trocar de lugar, ou para as refeições. Dentro e fora do prédio formaram-se aqueles montes de mandioca.

Naquela sofra, os donos de roçados de mandioca contrataram Damião das sete bocas com a sua tropa de burros mulos para fazer o carregamento da mandioca.

Damião era  uma figura engraçada. Homem dos seus 50 anos, viúvo, pai de dois filhos. À noite, com tanto beiju, tapioca e café, ele dormia  lá mesmo com a sua rede armada debaixo de uma mangueira que ficava entre a casa de farinha e a casa grande. Com Damião não existia tempo ruim. Logo cedo, ele reunia a moçada de folga e começava a contar umas estórias engraçadas - que ele as chamava de “trancoso”. Eram estórias de fantasmas, lobisomem, saci-pererê, mula sem cabeça e mãe do mato – a caipora.

Enquanto tinha aquela brincadeira na casa de farinha, padrinho João, como de costume, largava-se às residências dos moradores, retornando lá pelas nove.

No meio da mulherada, estavam as quatro filhas de Manoel das sete bocas. Era cada pedaço de cabocla! Elas usavam perfume comprado na feira de Vera Cruz. Só elas mesmas suportavam aquele cheiro horrível. Gostavam de trabalhar, mas detestavam conversar. Elas sempre viviam encabuladas. Uma delas - a Maria José - já estava quase no caritó, porém, tinha uma desenfreada paixão por Manoel das sete bocas, com quem se casou poucos meses depois.

 

 

 

Minha terceira fuga

 

F

 

inda a moagem na casa de farinha. Numa manhã, pelas oito horas, reuniram-se os homens e mulheres na residência de padrinho João para as prestações de contas.

Meu padrinho dera uma ligeira saída, enquanto eu retornava do cercado aonde fui deixar o gado. Madrinha Guilhermina, na frente do pessoal, aos gritos e sem nenhum motivo, deu-me dois cocorotes, que sai desorientado, morrendo de vergonha. Já um rapaz, eu não aceitava mais aquele comportamento. Fui ao meu quarto. Coloquei minha rede e minha roupa dentro de uma mala velha feita de tábuas, e fui embora.

As meninas de Manoel das sete bocas, que me queriam bem, ficaram chorando, as quais me acenavam toda vez que eu olhava para trás.

Segui caminho sem destino andando apressado igual a uma ave de arribação quando perde a revoada. Não encontrava uma só pessoa naquele caminho. O sol estava quente. Tirei de dentro da mala um relógio velho de algibeira, que já marcava meio dia e vinte. Cansado e com fome, procurei repousar debaixo de um pé de catanduba grande.

Naquele momento comecei a me preguntar: “Será que é este o meu destino”?

 Foram vinte minutos de descanso. Retomei à caminhada. Para aonde, não sabia!...

Peguei um caminho com um areal terrível.  O sol já pendia, mas queimava feito brasa. Já tardinha, aproximava-se a brisa da noite. Eu me sentia consado. Eis que vem cruzando comigo um cidadão dos seus 45 anos idade - a primeira pessoa que encontrei durante todo o caminho -, que montava num cavalo robusto e veloz, o qual parou o animal que ficou  num pé e noutro.

n Para onde você  está indo, filho?

n Eu vou procurar trabalho!!...

n  Mas, você vai para onde? Não sei. Vou sem destino. Não sei nem para onde vai este caminho.

n Este caminho vai para a cidade de Monte Alegre.

n Fica longe daqui?

n Não! Dar uma leguinha. Você conhece alguém lá?

n Não senhor.

n Vai com algum nome para procurar?

n Não senhor.

n E de onde você vem?

n Eu venho de Pitombeira.

n Santo Deus!! Mora lá com seus pais?

n Não senhor. Eu não tenho pai, nem mãe.

O estranho fechou a cara, demonstrando está traumatizado, entretanto, retomou o diálogo.

n Mas, tem irmãos, tios e outros parentes?

n  Não! Não senhor. Eu não tenho ninguém. Nem pai, nem mãe.

n E você vive andando assim sem rumo?

n  Não senhor. Eu fui criado por meu padrinho, mas não quero mais viver na companhia dele.

n Quem é seu padrinho.

n É João Horácio.

n  Ah! João Horácio!? É gente boa!!... Ele sabe que você fugiu.

n Deve saber, Mas, eu não quero voltar.

n  Meu filho - exclamou o homem - você é uma criança para enfrentar o mundo. Volte para casa de seu padrinho. Ele é ruim para você?

n Não senhor.

n Então!!... Volte, homem!

n  Não posso. Minha madrinha me bate muito. Não agüento. Prefiro ficar vagando pelo mundo.

O homem ficou agitado. Suspirou franzindo o couro da testa.  Encurtou as rédeas do cavalo. O animal quis se agitar. Do bolso, retirou um lápis e um pedaço de papel. Escreveu alguma coisa. Dobrou o papel e me entregou, dizendo:

“Aqui em Monte Alegre, você procure seu Chico Galvão, que é meu compadre e entregue-lhe este bilhete. Ele tem trabalho para você”.

O gentil homem esporou o cavalo e desapareceu em destino contrário, pelo mesmo caminho.

Quase escurecendo, apressei os passos. Logo, surgiu a lua, que estava linda. Depois de uma boa distância, avistei aqueles bicos de luzes turvas. Era a iluminação elétrica da cidade e apareciam as primeiras casas.

Dois homens sem camisas, sentados na calçada de uma casa, conversavam com uma mulher que permanecia em pé na rua, quando eu os interrompi:

n Boa noite!

n Boa noite – responderam.

n  Meus senhores,  onde mora seu Chico Galvão?

n Mora ali - respondeu um deles apontando com um pedaço de vara. É aquela casa grande de primeiro andar.

Para lá me dirigi. De fora dava para ver quem estava dentro de casa. Bati palmas. Saiu uma senhora morena, magra, alta, de cabelos encrespados, a quem entreguei o bilhete. Ela sumiu casa a dentro, mas voltou logo. Abriu a porta da área, mandando que me sentasse num sofá de veludo malhado, que mais se parecia com uma onça pintada.

Vem chegando à área um senhor dos seus 60 anos de idade, alvo e baixo. Era Chico Galvão e conduzia o bilhete na sua mão direita.

n É você o rapaz que compadre Zé mandou?

n Sou, sim senhor.

n Eu tenho trabalho. Você tem mesmo coragem?

n O senhor pode me testar.

n Sabe lutar com gado?

n Sei, sim senhor.

n Sabe cortar capim?

n Sei, sim senhor.

n Sabe tirar leite?

n Sei, sim senhor.

E continuando, disse Chico Galvão:

“Seu primeiro trabalho todo dia é ajudar ao tirador de leite a arrear os bezerros. Ele chega às 4 horas da madrugada. Eu lhe chamarei quando for hora. O nome dele é Paulo. Quando terminar de tirar o leite, você vai levar as vacas para o pasto, e em seguida cuidar da ração, que é capim e palmatória. Paulo vai lhe ensinar tudo direito. Compadre Zé disse no bilhete que você não tem pai, nem mãe. Se você for trabalhador mesmo, vai ter tudo isso aqui. Vou mandar lhe dar de comer. Você deve estar com muita fome”.

Foi um jantar farto igual ao da casa de padrinho João. O velho Chico Galvão não parava de fazer-me perguntas, porém, nada que me deixasse embaraçado. Jantei!... Ele levou-me para um depósito imenso, no qual armazenava muita coisa.

n  Você vai dormir aqui. Café, almoço e janta, você tem na minha casa. Boa noite!

n Boa noite, seu Chico.

 

 

No meu primeiro emprego

 

 

C

omo de costume, acordei antes das 4 da madrugada. A cidade estava no escuro por que a casa de força que gerava enérgia funcionava até às 22 horas.

Na casa de Chico Galvão via-se a luz de um lampião. E ouviam-se vozes. Vi dois vultos indo em minha direção. Era Chico Galvão com seu empregado.

n Júlio! -  gritou ele.

n Eu já estou acordado. Já desarmei até a rede.

n Você já acordou!!? Bom dia!

n Bom dia, seu Chico - cumprimentei-o.

n  Este aqui, Júlio, é Paulo o tirador de leite. Acompanhe ele ao curral.

Paulo levou-me ao curral. Vi que existiam mais cabeças de gado que na fazendo do meu padrinho João. Portanto, quanto ao trabalho não fazia diferença.

“Vá laçar aquele bezerro ali. Vá laçar aquele outro” - dizia Paulo.

Paulo, que não tinha a rapidez de compadre Zeca, terminou de tirar o leite às 8 horas da manhã. Fomos tomar café com Chico Galvão. Velho de barriga cheia! Mesa farta! Mas não fazia inveja a padrinho João.

Ao terminar o café dei uma saída até à calçada. Bem em frente estava estacionado um caminhão misto que fazia a linha de Monte Alegre à Natal. Entre os passageiros que iam embarcar estava Afonso de seu Nô de Madalena das Sete Bocas. Ele passara três anos na Capital de São Paulo e naquele momento estava retornando àquela grande metrópole.

n O que você está fazendo aqui? - perguntou ele.

n Eu deixei a casa de padrinho João, e não voltarei nunca mais.

n Mas, você não volta mesmo?

n Não.

n Você quer ir comigo para São Paulo?

n Vou.

n Dei-me o seu registro para comprar a passagem.

n Ah, não tenho.

n Mas, que pena, eu ia lhe levar e você se daria bem.

O motorista ligou o motor do caminhão e Afonso subiu à sua cabina. O veículo seguiu viagem, enquanto Afonso me acenava.

 

 

 

Meu segundo emprego

 

O

 

trabalho na fazenda era igual ao da fazenda Pitombeira, exceto o de ir buscar água. Razão pela qual, em nada estranhei. O velho Chico Galvão, seus trabalhadores e amigos admiravam a disposição que eu tinha para o trabalho. A fama sobre o meu trabalho logo se espalhou, surgindo vários convites para trabalhar com outro patrão, mas só me ofereciam salário insignificante.

Na fazenda de Chico Galvão trabalhei perto de um ano, foi quando travei conhecimento com José Maria e Iarandi - este, a família o chamava de major -, filhos de Luiz Sátiro, também fazendeiro, os quais me  convidaram para ir  trabalhar  na  fazenda  deles. Aceitei  e  fui pedir as contas ao senhor Chico Galvão, que ficou com o quê de tristeza  alguns minutos sem me responder nada, mas, ao cabo deste tempo, disse-me:

“Vai com Deus, Júlio”.

Fui-me!

A fazenda de Luiz Sátiro ficava bem perto da cidade, além desta, também possuía  uma  padaria na rua principal de Monte Alegre. Procurei José Maria e Iarandir aos quais informei  que iria trabalhar para eles.

Fui levado à fazenda de Luiz Sátiro, para trabalhar na agricultura e tomar conta do gado. Dormida e alimentação,  tudo  lá mesmo.

Os  filhos de Luiz Sátiro me incentivaram a estudar. Matriculei-me na escola do professor Chico de Tutuia, que levava jeito de quem não gostava de mulher, porém, um excelente mestre. Fui aprimorando os meus poucos conhecimentos que tiveram inicío com os primeiros ensinamentos de padrinho João Horácio. E assim, segui minha vida, trabalhando de dia e estudando de noite.

O serviço havia aumentado na fazenda. Para me ajudar foi para lá  um rapaz de nome Edmundo, procedente da Paraíba. Ele era preguiçoso. Eu, acostumado com aquela vida, acordava antes das 5 horas, indo trabalhar na lavoura, enquanto Edmundo ficava deitado até às 7 ou 8 horas.

José Maria e Major iam muito à fazenda com o seu pai, os quais ficavam conversando comigo. Quem sempre estava  lá quase todos os dias, era seu Rolandino, sogro de Luiz Sátiro. Era um velhinho baixinho, com um coração formidável e demonstrava que me queria bem.

Aquela amizade toda causou inveja ao tal Edmundo. E numa certa manhã, ele deu-me uma bofetada na boca e puxou uma pistola fogo central para me matar.

Sai correndo todo ensangüentado. Fui até à casa de Luiz Sátiro, na cidade, que sem perder tempo levou a  polícia à fazenda. Tomaram a pistola de Edmundo. Colocaram-no dentro de um Jeep, e foram deixá-lo na fronteira do Rio Grande do Norte com a Paraíba.

Não tardou, porém, os filhos de Luiz Sátiro convencer o pai para me colocar nos trabalhos da padaria. Fiquei trabalhando interno por algumas semanas. Depois fui vender pão com um balaio na cabeça. Larguei o balaio para utilizar uma burra mula.

Minhas viagens aumentaram. E para longe. Eu colocava a cangalha na burra com uma grande carga de saquinhos de brotes e bolachas. Não existia hora para sair, nem para chegar. Às vezes, à meia noite, eu estava distante. Andava por Lagoa de Pedras, Lagoa Salgada,  Vera Cruz e vários povoados, com dezenas de quilômetros de distância.

 

 

 

Busquei vida melhor

 

A

 

profissão que eu estava exercendo, não era a que eu desejava. E vivia pensando buscar nova vida. Eu queria estudar mais, entretanto, os conhecimentos de Chico de Tutuia haviam se esgotado para mim.

Uma força interior de há muito me impulsionava a mudar de vida. De procurar nova perspectiva. Foi assim ao deixar a casa de padrinho João Horácio, ao deixar Chico Galvão. E desta vez, mais forte, para deixar Luiz Sátiro e buscar uma vida mais digna.

Foi nesse tempo que travei conhecimento com o soldado Domício, que servia no destacamento policial de Monte Alegre, o qual me aconselhou para sentar praça na Polícia Militar. Eu estava com 16 anos e oito meses, e segundo ele, a corporação aceitava rapazes maiores de 16 anos, pois o Exército estava autorizando.

Para ser incorporado, a polícia exigia o registro de nascimento, mas eu não o tinha. O Soldado Domício levou-me ao Cartório de Solon Ubarana, onde fui registrado como natural de Monte Alegre, com os nomes dos meus pais verdadeiros: Antônio Ribeiro da Rocha e Isabel Firmino da Conceição.

Era 14 de agosto de 1957. Domício mandou que eu arrumasse  meus pertences, que no dia seguinte, às 7 horas, eu iria à Natal, a fim de alistar-me na Polícia Militar.  De fato, no dia 15, bem cedo, ele foi até à padaria de Luiz Sátiro, onde eu já o aguardava. Entregou-me um bilhete e disse-me:

“Quando você chegar ao portão, diga que deseja falar com o brigada, que é o sargento Balduíno, e entregue este bilhete a ele”.

Da padaria, levou-me até ao caminhão misto de Ernesto, a quem recomendou:

n  Ernesto, este rapaz vai para o Quartel da Polícia Militar. Quando você chegar em frente ao Clube dos Funcionários do Banco do Brasil, mande-o  descer e ensine-o como chegar ao  quartel.

n Pois não, Domício - respondeu Ernesto.

Apanhei o misto me espremendo todo por que  o veículo estava lotado. Com pouco tempo, Ernesto deu partida. Nós seguimos por aquela estrada estreita e empoeirada, até que chegamos à pista - a BR 101- que também era estreita, e passava apertado um carro por outro.

Finalmente, estávamos em Natal. Ernesto parou o misto de supetão e deu marcha ré. Ele havia passado do local que Domício o solicitara. Parou o carro. Olhou para mim e apontando com o dedo indicador da mão esquerda, disse-me:

“Desça e vá num caminho que tem por baixo daquelas mangueiras, que vai sair bem em frente ao portão do quartel”.

 

 

No quartel

 

 

N

a metade do caminho avistei o quartel. Fui tomando chegada. Todo assustado com aqueles modos de matuto. Apresentei o bilhete à sentinela, informando-lhe que gostaria de falar com o sargento Balduíno. Minha voz quase que não saia.

Vem o sargento comandante da guarda, que escalou um soldado para apresentar-me ao sargento. O soldado chegou ao gabinete de Balduíno, que era  responsável pelo alistamento do pessoal, juntou os pés, fez continência e disse:

n Dá licença, sargento!?

n Pois não, diga.

n Sargento, este rapaz quer falar com o senhor.

n Está apresentado. Pode ir.

O Sargento Balduíno, que estava escrevendo numa máquina de datilografia, parou o seu trabalho para atender-me. Fiz-lhe entrega do bilhete, que o leu em voz alta na minha presença e balançava com a cabeça dando sinal positivo.

O brigada disse-me que o decreto só abriria no final daquele  mês, mas eu iria ficar acostado e arranchado. Dois vocábulos que eu não entendia! Levou-me até à Companhia de Instrução e disse ao sargento-furriel:

“Coloque este rapaz na grade de rancho, que ele vai ficar acostado aqui. E continuando, acrescentou: Dê-lhe um armário, biliche e seus acessórios”.

Deu meio-dia. Vem, então um cabo, o qual determinou que o pessoal acostado entrasse em forma, coluna por três. Em seguida, disse:

“Comigo, para o rancho”.

A comida não tinha aquele gosto da caseira, mas era boa. Feijão, farinha, arroz, carne escassa e duas bananas.

Eu achava interessantes as instruções de ordem unida e as continências que os policiais prestavam. Mas, o que eu mais admirava era a disciplina que existia entre os segmentos da hierarquia militar.

O cabo de dia à companhia viu minha mala velha dentro do armário de ferro que eu havia recebido. Pediu-me a chave do armário, dizendo:

“Vou jogar esta mala no lixo, pois você não vai precisar mais dela. Você é peixinho do sargento Balduíno. Pode se considerar incorporado na polícia”.

 

 

 

 

 

 

 

A seleção

 

 

N

o final de agosto, após o toque de formatura geral para a revista matinal, presente o Comandante Geral,  coronel José Reinaldo Cavalcanti,  foi realizada a chamada dos duzentos e poucos homens, que seriam incorporados.

Quem ia sendo chamado, entrava em forma coluna  por seis. Ao chamar o último homem, chegaram três investigadores da Polícia Civil, que correram a vista, demoradamente, em todos os homens. Os investigadores retiraram cinco pessoas, que tiveram seus documentos devolvidos e foram informadas  que não poderiam servir à corporação. Os quais tinham ficha na polícia civil.

Além destes, houve o caso daquele oficial superior, que parou diante dos recrutas, deteve-se um instante olhando para Ivan e dando sinal com a mão direita, disse:

“Venha cá!...”

Continuando, determinou ao oficial subalterno que estava à frente da tropa:

“Devolva os documentos deste cidadão, pois ele não presta e tem várias entradas na Delegacia de Parnamirim”.

Realmente, o oficial tinha razão. Os anos se passaram e eu tive oportunidade de vê Ivan preso sucessivas vezes pela Delegacia de Roubos e Furtos, em Natal.

Chegou o dia da incorporação - 2 de setembro de 1957. Éramos 225 homens. Não seria possível declinar os nomes de tanta gente, contudo, destaco aqueles que me foram mais próximos: Gil Xavier de Lucena, João Xavier Filho, Sérgio Teixeira de Sousa, Orlando, Cirilo.

Meu nome de guerra: Soldado Júlio.

Passamos quatro meses como recrutas, assistindo aulas nos dois expedientes e recebendo instruções de ordem unida, regulamentos militares e de policiamento.

Ao serviço

 

T

 

erminava o mês de dezembro, quando passamos a pronto. Isto queria dizer que nós estávamos habilitados ao serviço policial militar. Comecei minha carreira trabalhando na tesouraria da corporação, que tinha como Chefe o Major Antônio Morais Neto, o qual muito me incentivou a estudar.

Eu e João Xavier Filho fomos estudar na escola do aluno oficial Pereira, que funcionava num salão, na Avenida Quatro, com a rua Jaguarari, no bairro de Lagoa Seca, bem distante do Quartel do Comando Geral, no horário das 7 às 22 da noite. A gente ia a pé porque não existia ônibus, enfrentando uma tremenda escuridão quase todo o caminho.

No início de janeiro de 1959, fui aprovado no exame de seleção para cabo de fileira. Com uma turma de sessenta alunos, o curso teve a duração de seis meses e funcionava nos dois expedientes. No mês de junho daquele ano, fui promovido a Cabo.

A responsabilidade aumentara, e eu fiquei trabalhando na tesouraria da corporação e concorrendo à escala de serviço de cabo da guarda do portão principal. Num dos serviços, descobri que existia um Curso de Exame de Admissão bem em frente ao portão do quartel. Procurei a direção do curso e fiz minha matrícula. Estudei todo o  ano de 1960. No final do ano fiz as provas e recebi meu diploma e fui fazer os exames para entrar no Curso Ginasial do Atheneu.

Foi no meu primeiro ano, no Atheneu, que conheci Maria Aparecida, com 16 anos de idade, também cursando o primeiro ginasial na mesma classe, que depois se tornou o grande e único amor de minha vida.

Fazia um mês que o curso tivera início. Maria Aparecida deixou de freqüentar as aulas. Após alguns dias, recebi um bilhete dela que me convidava ir à sua residência.

Enchi-me de alegria, pois eu não tinha o seu endereço. Com o meu coração pulando de felicidade fui vê-la à noite. Estava encantadora, a qual me disse que estivera doente e que na semana seguinte voltaria às aulas. Voltou. Sentou-se na mesma cadeira de antes ao meu lado. Meu coração pulsava de alegria. Naquele ano mesmo, ficamos noivos.

Aparecida morava bem próximo ao Atheneu. Sua mãe, Maria Assunção, ia deixá-la todas as noites. E lá ficava aguardando até a última aula.

Vi que Aparecida era uma boa filha. E tinha uma boa mãe. Cuidadosa. Cheia de afeiçoado amor pela filha.

Deus estava fazendo a sua obra, pois logo que entrei na corporação, fiz um pedido ao Senhor, meu Deus, que me apresentasse uma moça que fosse boa filha, por que me seria boa esposa. E assim me fez  o Senhor. Meu Deus, Todo-Poderoso. Onipotente.

Só com o nosso noivado foi-me confiada a companhia da Aparecida, a fim de apanhá-la em sua residência e deixá-la todas as noites de aulas.

 

 

 

Jantar com Luciano

 

P

 

assava das 18:00 horas de uma quinta-feira do mês de setembro de 1960. No Grande Ponto, como era conhecido o centro da cidade, que se tornara intransitável. O senhor Aluízio Alves, que era candidato a Governador do Estado do Rio Grande do Norte, realizava mais um de seus comícios. Com um carisma extraordinário, conseguia magnetizar multidões incalculáveis de correligionários fanáticos. Mulheres – jovens e idosas – choravam e desmaiavam. Ele era mesmo um cigano feiticeiro, como o foi cognominado popularmente.

Eu me encontrava bem distante do palanque assistindo a um espetáculo que nunca tivera visto. Aquela multidão, que se encolhia  e se espremia a procura de espaço para apoiar os pés, parecia estar enfeitiçada. Perto dali observei uma senhora dos seus 40 anos de idade, a qual,  possuída de  uma desequilibrada paixão, delirava dizendo para uma sua amiga:

“Tadinho, mulé!! Ele parece um santo!!...”

Eis que alguém me puxou pelo braço. Virei-me rapidamente. Era o meu colega de turma de praça, o 3º sargento João Xavier Filho, que viera de Martins, o qual me convidou para, às 20:00 horas daquele dia, ir a um jantar que  os  sargentos  da Polícia Militar estavam oferecendo ao coronel Luciano Veras Saldanha, na Peixada do Arnaldo, no bairro das Rocas.

n Quem é o coronel Luciano? - perguntei.

n  Coronel Luciano é da Reserva Remunerada de Cavalaria do Exército. Ele já foi Comandante Geral da Polícia Militar. Deu início ao seu comando no quartel velho, que atualmente é a casa do estudante. Foi ele quem construiu o quartel novo.

Conversando, o tempo passou rápido. Xavier consultou o seu relógio e disse:

“Estar na hora. Vamos!...”

Saímos com destino à Peixada do Arnaldo. Não levamos mais de 10 minutos para lá chegar. Tinha gente que não cabia mais. O coronel Luciano não demorou chegar. Homem forte, vermelho, com um metro e noventa de altura. Com ele, uma comitiva  que tinha o comando de Erivan França - um aluizista de carteirinha. Começaram os comes e bebes, e em seguida os discursos de vários sargentos; dentre eles, um - em nome de todos - convidou o coronel Luciano  para comandar a Polícia Militar, se Aluízio se elegesse  governador. Encerrando, o coronel Luciano falou com muita veemência, agradecendo e aceitando o convite.

 

 

 

Vem o dia da eleição

 

N

 

o interior do Quartel do Comando Geral, a tropa vivia um clima de emocionante expectativa com as promessas de melhores condições de vida para os servidores públicos civis e militares anunciadas eloqüentemente pelo o senhor Aluízio Alves, candidato a governador enfrentando o seu adversário Djalma Marinho, este, apoiado pelo governador Dinarte Mariz.

Diversos gabinetes de oficiais superiores, meieiros da política provincial, foram transformados em birôs eleitorais prol candidatura Aluízio Alves. A tropa acreditou na conversa fiada dos oficiais, bem como nos inebriantes e demagogos discursos de Aluízio, que era, sem dúvida, um grande orador.

Os policiais militares fecharam com ele, certos de que teriam melhores dias, uma vez que a Polícia Militar vivia uma de suas crises salariais.

Existiam policiais, que sem nenhum escrúpulo, brigavam por Aluízio dentro de sua própria unidade. A cata dos votos se processava ostensivamente de maneira ridícula, sem nenhuma ética ou zelo à instituição.

Finalmente chegou o dia da eleição. Natal e todo o interior se transformaram num verdadeiro campo de batalha.

Apuradas as urnas, o candidato vitorioso foi o senhor Aluízio. A euforia  tomou  conta  dos  policiais militares aluizistas, pois diziam que depositavam toda esperança no recém eleito chefe do executivo potiguar.

No dia que foi proclamada a vitória do senhor Aluízio Alves, Natal - a Capital do Estado do Rio Grande do Norte - foi transformada num palco de festa e anarquia, com passeatas pelas ruas da cidade. Por onde os partidários de Aluízio passavam iam devastando tudo, quebrando galhos das árvores levando toda ramagem nos ombros, cabeças e mãos, igual a um tenebroso furacão.

E, no dia seguinte, Natal amanhecera transformada num tapete verde com ramas e galhos de árvores espalhados pelo chão.

 

 

 

A caneta de ouro

 

 

O

s sargentos se reuniram e programaram um jantar para o coronel Luciano. Desta vez, o evento aconteceu na residência de um vereador aluizista, no bairro de Nova Descoberta.

Faltou chão, uma vez que muitos sargentos que não foram ao jantar anterior, porque estavam “em cima do muro”, aderiram ao aluizismo após as eleições e compareceram ao jantar.

Naquela ocasião os sargentos,  mesmo morrendo de fome, ofereceram uma caneta de ouro ao seu futuro comandante, com os seguintes dizeres:

“DOS SARGENTOS DA POLÍCIA MILITAR AO CORONEL LUCIANO”.

A doação da caneta foi o maior quebra-gelo encontrado pelos sargentos, permitindo uma grande abertura junto ao velho coronel.

Na verdade, o objetivo era aquele. E na ocasião fizeram inúmeras reivindicações, dentre elas o direito de usar camisa de mangas compridas, pois à época só quem usava tal uniforme eram os oficiais, sendo proibido aos subtenentes e sargentos porque se pareciam com oficial. E quem se atrevesse  usá-lo seria punido severamente, até com recolhimento ao xadrez - coisa mais do que humilhante e absurda.

O coronel nem pensou duas vezes. Deu a sua palavra de honra de que atenderia às pretensões da sargentada. E para aqueles que conheciam o procedimento de Luciano, sabiam que a sua palavra valia mais que a própria lei, uma vez que, no seu primeiro comando, fora um homem firme em suas decisões.

 

 

 

O clima na tropa

 

C

 

om a oferta da caneta de ouro, num jantar com saboroso tempero de alegria, alguns oficiais e sargentos passaram a confundir as coisas. Os quais instalaram um verdadeiro clima de terror dentro do Quartel do Comando Geral da Polícia Militar. Os aluizistas fardados afrontavam diariamente os raros dinartistas dentro do quartel. Era um desatino ridículo. Os adversários do aluizismo baixavam a cabeça diante do comportamento daqueles que não se pareciam em nada com policiais militares.

A disciplina e a hierarquia foram bagunçadas no meio da tropa. E assim, até  sargentos  ameaçavam  de transferir os seus companheiros - subordinados ou superiores - para cidades distantes da capital. E o faziam sem qualquer  sentimento. O interior do quartel foi transformado num campo minado de  conflitos  diários. Os protagonistas daquele jogo sujo partiram  até  para o uso de palavras obscenas contra os policiais que não apoiaram Aluizio.

Quanta baixaria! Que falta de vergonha!!...

Comecei a me decepcionar com os componentes da corporação.

O comandante geral era o tenente-coronel José Reinaldo Cavalcante, comissionado ao posto de coronel que estava aguardando ser promovido ao posto imediato.  Este, com efeito, contava apenas os dias para efetivar a passagem do comando da corporação ao seu velho comandante. E preferiu fechar os olhos a tanta desordem.

 

 

 

A posse de Luciano

 

 

C

om Aluízio já governador, o coronel da Reserva Remunerada de Cavalaria do Exército, Luciano Veras Saldanha, assumiu o Comando Geral da Polícia Militar, às 8 horas, no incío do mês de fevereiro de 1961. A tropa em forma no pátio anterior do Quartel do Comando Geral, o coronel José Reinaldo passou o comando da corporação militar ao seu novo comandante geral.

Vestindo, impecavelmente, a farda caqui da Polícia Militar, sobre os seus ombros as insígnas de oficial superior, devidamente comissionado a coronel fechado da organização policial militar, por decreto do Governador do Estado do Rio Grande do Norte, o coronel Luciano diante da tropa pronunciou o seu solene discurso, que, acima de tudo, ficou registrado na história da corporação:

“Assumo o Comando da Polícia Militar. Não tenho rabo de palha como muita gente boa tem aqui, que não pode dobrar naquela esquina ali que o seu rabo pega fogo  (apontando com o dedo indicador para a esquina do quartel que ficava ao seu lado direito). A roda grande vai entrar na pequena! Só quero ver aqui eu e o carneirinho da banda de música, pois quem não prestar eu ponho no olho da rua”.

Bem enfático, o velho coronel, finalmente, concluiu:

“E tem mais!!... Eu não comandarei uma tropa com fome, porque uma tropa com fome a disciplina entra pela boca, pois saco seco não se põe em pé”.

O velho Luciano chegou com tudo! Conhecendo-o como a maioria da tropa o conhecia!!... Ninguém duvidava de nada!

As palavras de Luciano mexeram com a emoção dos policiais militares, a ponto de um oficial, gritar:

“UIPIURRA, coronel Luciano!!!”

E toda a tropa, sem entender o que diabo queria dizer aquela palavra - UIPIURRA -, gritou:

“UIPIURRA, coronel Luciano!!”

Mas, os policiais gostaram e repetiram:

“UIPIURRA, coronel Luciano!!

Poucos policiais militares sabiam o porquê daquelas palavras ásperas do novo comandante. É que ao deixar o seu último comando da PM, alguns oficiais que não lhe eram simpáticos dirigiram-lhe algumas pilhérias e ele as engoliu calado, posto que já estava fora do comando. Retornando ao seu antigo cargo, ele chegava com duas “quentes e uma fervendo”, e não poupou os seus algozes, cuja maioria já se encontrava na reserva remunerada da instituição militar.

 

 

 

Primeira punição disciplinar

 

O

 

s sargentos que aderiram aos defensores fervorosos do retorno de Luciano ao comando da Polícia Militar, com tudo quanto ele tinha direito – banquetes,  caneta de ouro e as honrarias inerentes  ao cargo de comandante geral -, foram contaminados pela euforia do aluizismo, e esqueceram-se de que o novo comandante era caxias. Deveras, muito Caxias!

Sem escrúpulo, chegaram a transpor os limites dos pilares da disciplina e da hierarquia, estremecidos pela politicagem nojenta praticada dentro da corporação.

Ocorreu, naquele tempo, a primeira punição assinada com dita caneta de ouro. Adivinha contra quem!?... Contra o sargento Geraldo  - um dos doadores da dita caneta de ouro. E foi de 30 dias de prisão, recolhido ao xadrez. O qual já estava insatisfeito com Luciano e Aluizio.

A medida punitiva do comandante não agradou em nada aos subtenentes e sargentos, que tentaram reverter o ato do comando. Ele, porém, não cedeu. E a classe ficou de “Orelha em pé”. Não obstante, os audaciosos atos de indisciplina praticados por Geraldo,  não deixaram brecha à sua defesa.

Desde então, as punições foram acontecendo. Tudo fazia crer que muitos haviam construído o seu castelo em cima de dunas, ao invés de construí-lo sobre rochas. Todavia, a maioria, que se reservava, continuava desfrutando do prestígio junto ao coronel Luciano, a quem ele agradecia estar de volta ao comando da corporação.

Geraldo, realmente, foi a ovelha negra naquela história.

Na esfera executiva, os primeiros atos do Governador Aluízio Alves foram fulminantes para os servidores civis e militares. Ele tornou sem efeito um aumento de quatro mil cruzeiros que o ex-Governador Dinarte Mariz havia concedido ao funcionalismo. Naquela época, as coletorias  do interior do estado eram responsáveis pelo pagamento dos funcionários que serviam no interior. E o pagamento do primeiro mês de aumento já havia acontecido.

O governador determinou o retorno dos quatro mil cruzeiros aos cofres do estado e deu aos servidores estaduais, numa situação emergencial, um crédito de hum mil cruzeiros numa caderneta, cuja capa era verde para os policiais militares e marron claro para os civis.

Com o crédito, eles só compravam na cantina da Polícia Militar, que era instalada no interior do quartel do Comando Geral. E quem não o utilizasse, ficaria “chupando o dedo”.

Dia-e-noite, formavam-se intermináveis filas de funcionários e familiares, a fim de efetuarem suas compras na cantina da Polícia Militar. As filas davam volta em torno do quartel. Viam-se mães de família, mulheres gestantes e pessoas idosas, impacientes, enfrentando aquelas horríveis filas. Passadas de fome, muitas mulheres sofriam desmaios. Outras choravam desesperadas com a demora vendo seus filhos sofrendo com a fome que os castigava. Quantas donas de casa no desejo de saciar a fome dos seus filhos ultrapassavam o valor de suas compras, deixando-as nos limites dos minguados hum mil cruzeiros.

 

 

 

Jogo pesado com a PM

 

U

 

m ato para arrasar com a Polícia Militar, o governador fez publicar no Diário Oficial do Estado. Por decreto, rebaixou os policiais militares que foram promovidos no final do mandato do Governador Dinarte Mariz.

E assim,  rebaixou de tenente-coronel para major, de major para capitão, de capitão para 1º tenente, de 1º para 2º e deste para a graduação de praça.

Teve um caso estarrecedor com o 1º tenente Pedro Joaquim da Costa. O oficial era 1º sargento, que foi promovido à graduação de subtenente por contar 30 anos de serviço, e conseqüentemente, aos postos de 2º e 1º tenente,  porque lutou contra os comunistas de 1935, que invadiram o Quartel da então Força Pública, e por haver servido ao país na Segundo Guerra Mundial.

O Governador Aluízio rebaixou o 1º tenente Pedro à graduação de 1º sargento. Porém, grande foi a indignação do referido oficial, o qual acionou a justiça e reconquistou os seus direitos. E, quem buscou a justiça, teve o seu direito restabelecido.

Não só os prejudicados, mas toda a corporação passou a ter dúvida sobre o mundo fantástico que fora fantasiado por Aluízio e seus seguidores milicianos durante a campanha.

Os aluizistas da farda perderam o encanto diante do não cumprimento das promessas de campanha. Os dinartistas aproveitaram para ir à desforra dizendo:

“Cadê o seu governador!? Cadê!?...” – perguntavam enfurecidos.

 

 

 

A bandeira e o Tribunal

 

N

 

a noite do dia 22 de abril de 1961, em frente ao Tribunal de Justiça, e ao mesmo tempo em frente ao Palácio da Esperança - nome que recebeu o Palácio Potengi -, um desconhecido hasteou uma bandeira da campanha de Djalma Marinho, que fora   adversário de Aluízio.

Sendo dinartista a maioria dos desembargadores, Aluízio ao tomar conhecimento, no dia seguinte – 23 de abril -  publicou no Diário Oficial nota de gabinete nos seguintes termos:

“Gabinete do Governador - Nota. O Governador do Estado teve conhecimento, hoje, às 9 horas, de que mãos anônimas haviam, durante a noite, hasteado, em frente ao edifício do Tribunal de Justiça uma bandeira vermelha-azul marinho que, na última campanha eleitoral, era símbolo de uma corrente política.

Muito embora a cidade, nos seus postes e casas, ostente, ainda, as bandeiras que representam as facções que disputavam o pleito, sendo lícito a qualquer pessoa, em qualquer tempo, exprimir,  por tais processos simbólicos, as suas atitudes, recomendou o Governo ao Secretário de Segurança Pública que fosse retirada do poste fronteiro aquele edifício a bandeira aludida, como homenagem ao Tribunal de Justiça, que deve pairar pela sua própria função constitucional.

Nesta oportunidade, o Governo do Estado do Rio Grande do Norte faz um apelo a todos os riograndenses do norte, que apontem ou discordem das decisões do Poder Judiciário, aprovando-as ou desaprovando-as, como é legítimo a qualquer cidadão...”

O Chefe de Polícia, capitão do Exército José Leão Filho, determinou ao Comandante Geral da Polícia Militar que uma guarnição da corporação se deslocasse ao Tribunal de Justiça, e com o auxílio de uma escada retirasse a bandeira adversária, que estava causando pavor ao bloco aluizista.

 

 

 

A pracinha e o símbolo

 

A

luizista de carteirinha, o comandante Luciano mandou colocar  nas viaturas da corporação decalques com um dos símbolos da campanha política de Aluízio - uma mão fechada com o polegar para cima.

Em frente ao rancho da unidade mandou construir uma pracinha com uma fonte luminosa ao centro. A fonte foi revestida com azulejos nos quais desenhada a dita mão da campanha política. No dia da inauguração, com coquetel,  banda de música e discursos, Aluízio lá não foi; preferiu mandar o seu Secretário de Segurança, capitão  José Leão Filho.

Os dedos desenhados no azulejo, com o efeito da reflexão da luz na água formavam uma sombra avessa. Luciano muito admirado e empolgado com a sua obra-de-arte, eis que se achegou a ele um soldado e disse:

n Mas, óia, coroné!!...

n Diga, doutor!... - atendeu Luciano.

n Os dedos de Aluízio estão de cabeça pra baixo!!...

O velho coronel ficou virado numa fera com aquela observação do seu comandado.

Essa obra passou a ser motivo de muitas críticas feitas pelos   policiais militares mais sensatos, os quais achavam que a Polícia Militar não deveria ser palco politiqueiro.

 

 

 

O abono de emergência

 

O

 

 crédito dado nas cadernetas, que era um valor irrisório, em nada melhorou a vida dos funcionários. Dentro do Quartel da Polícia Militar, ninguém mais queria ser partidário de Aluízio. A tropa, decepcionada e desiludida, não via nenhuma perspectiva para melhores condições de vida. A comunidade miliciana vivia um verdadeiro desencanto.

Vem o final do ano de 1961. O governador deu um abono de emergência aos servidores civis e militares, mas num pequeno percentual, que não resolveu nada. E suspendeu o crédito concedido no início do seu governo.

Os valores das compras realizadas pelos servidores na cantina da Polícia Militar foram descontados do mixuruca abono de emergência.

Sabendo que sobre o abono dado não podiam incidir as gratificações, o governo viu que esta seria a maneira mais correta para esvaziar a folha de pagamento do funcionalismo, impondo-lhe uma vida miserável, especialmente, aos policiais militares.

Continuando, no ano seguinte Aluízio deu mais abono ao servidor, todavia, não se aproximava à realidade do custo de vida. Na Polícia Militar, por exemplo, o salário de um terceiro sargento não chegava ao valor de um salário mínimo. A Polícia Militar foi classificada  pela imprensa nacional como a organização policial militar mais pobre do país.

 

 

 

Campanha para deputado

 

 

A

 desculpa sobre a ausência de melhores condições salariais para o funcionalismo era a de que Aluízio não contava com maioria na Assembléia Legislativa e para tal precisava fazer maior número de deputados nas eleições para a escolha de novos representantes do Poder Legislativo Potiguar, que naquela época não coincidia com a eleição majoritária.

O governador, utilizando-se dos meios de comunicação, fazia pronunciamento dramático e chamava à atenção dos funcionários civis e militares, pedindo-lhes que votassem nos candidatos da situação. E a tropa - na sua maioria - votou nos candidatos do governador, exceto os dinartistas mais radicais. E mais uma vez, foi lesada pelos oficiais inescrupulosos, que fizeram dos seus gabinetes comitês eleitorais, transformando o Quartel da Polícia Militar  num antro politiqueiro. Uma grande falta de vergonha.

A bancada governista fez maioria na Assembléia Legislativa. As esperanças da tropa foram reabilitadas. Com a maioria dos deputados, o governo aprovaria as suas mensagens de reajuste salarial para os servidores. O desavergonhado aluizismo fardado passou a “dar as cartas” e zombavam dos poucos dinartistas.

 Empossados os novos deputados. Passaram-se dois meses... três meses... seis meses... E nada! Nada, entretanto, mudou, senão as constantes perseguições na Polícia Militar, através de um regime rígido, com a aplicação de punições perversas, chegando até a rebaixar o homem por 60 dias; isso quer dizer que o cidadão teria o seu salário diminuído ao posto anterior – se 3º sargento, ganharia como cabo, etc.

Revoltados, os sargentos se organizaram em comissão e foram falar com o Coronel Luciano, a fim de solicitar que ele fosse ao Governador Aluízio na busca de melhores vencimentos.

O governador, entretanto, não deu ouvidos ao coronel Luciano. Nem tampouco melhorou a situação da tropa que se alimentava no rancho.

Visando minimizar o sofrimento dos seus comandados, o coronel Luciano procurou a Sudene, que distribuía alimentos do Programa Aliança para o Progresso, criado pelo Presidente Kennedy, dos  Estados Unidos, destinado a socorrer os países pobres, onde conseguiu gêneros alimentícios para  abastecer o rancho. No almoço era servido um feijão que a tropa o denominou de “feijão Sudene” e fogo nenhum do mundo cozinhava. No jantar era sopa de bugol - uma espécie de arroz de péssima qualidade -, que até os porcos faziam cara feia para comer.

A insatisfação crescia de maneira assustadora no seio da tropa. A alimentação, que o rancho servia, era pobre em nutrientes, deixando o homem subnutrido e cadavérico. O índice de policiais militares tuberculosos causava espanto ao serviço médico da corporação.

Estressados com apertadas escalas de serviço e péssimos alimentados, diversos policiais desmaiavam dentro do quartel ou em via pública. Numa formatura geral, dois soldados desmaiaram, quando o tenente Damacínclito Menezes gritou:

“Bota no tambor do lixo!”

A onda de perseguições e desilusões fugia do controle, gerando constantes desentendimentos entre Luciano, oficiais e praças. Estes últimos estavam levando o comandante na “gandaia”. E o que Luciano falava era igual a um risco no chão que se apagava com o soprar do vento.

 

 

 

 

 

 

 

Fui promovido a sargento

 

 

E

m outubro de 1961, fui aprovado no exame de seleção para o curso de terceiro sargento de fileira. Foram 75 candidatos, dos quais só 15 tiveram sucesso, mas o comandante determinou que o curso funcionasse com os 75.

O curso funcionou durante nove meses, nos dois expedientes. Existiam instrutores tão chatos e desinteligentes que nos deixavam querendo desistir do curso. Tinha aquele tenente muito do besta que nos dias de prova saia por cima das bancadas de cimento onde funcionava o curso, pisava até nas provas. Ele dizia que era para evitar que alguém colasse e ameaçava desligar do curso se flagrasse um aluno colando. Com tanta tolice, os alunos colavam até na ocasião que ele pisava nas provas.

A maioria  dos instrutores não fazia nada de louvável.  Sem didática, eles  só sabiam nos ameaçar com punições disciplinares ou desligamento do curso, deixando-nos estressados e sem estímulo.

Belo incentivo!!...

Eu tentei diversas vezes deixar o curso, mas graças  ao Diretor de Ensino, coronel José Almeida, que me aconselhou a não desistir.

Em julho de 1962, eu e meus companheiros fomos promovidos à graduação de terceiro sargento. E, como sargento, procurei, a cada dia, aprimorar os meus conhecimentos intelectuais.

 

 

 

O grupo renovador

 

 

A

pesar das terríveis dificuldades e sem nenhuma esperança de melhores condições de vida, um grupo de policiais militares com o pensamento voltado aos interesses comuns dos irmãos de farda e apoiado pela Assistente Social da corporação, Maria das Dores Costa, fundou o Grupo Renovador, que teve como membros o tenente José Freire Sobrinho, os sargentos Gil Xavier de Lucena, José Neris  Sobrinho, Fernando Dantas, José Eustáquio de Morais, Júlio Ribeiro da Rocha, soldado Paulo, outros oficiais e praças cujos nomes me fogem à memória.

Das reuniões do Grupo Renovador participavam, quando convidados, o Coronel Luciano, e o Capitão Capelão Padre Manoel Barbosa de Vasconcelos Filho.

Luciano era muito vaidoso, quando  se sabia administrar, habilmente, um entendimento com ele. Os integrantes do grupo foram reconquistando a confiança do velho comandante com o objetivo de criar nele novos conceitos na busca de uma solução para os problemas  gravíssimos que envolviam a Polícia Militar.

Aos poucos e com muita cautela, o Grupo Renovador foi levando sugestões ao coronel comandante, nas quais estavam incluídas as  questões salariais.

Entretanto, no que se referia aos vencimentos da tropa, suas respostas jamais foram satisfatórias e  sempre as mesmas:

“Falei com Aluízio, ele disse-me que vai estudar”.

Apesar da intranqüilidade dentro da corporação, muitas idéias boas foram aproveitadas do grupo, dentre as quais destacamos a exploração do Sítio Rocas de propriedade da Polícia Militar, que se localizava às margens da estrada Natal-Redinha e do Rio Potengi.

Na nossa proposta, constava a fundação de uma cooperativa que seria administrada por uma comissão constituída por membros do Grupo Renovador, a qual cuidaria da ampliação do projeto, mas o comandante preferiu designar um policial militar totalmente alheio aos nossos desejos.

Através daquele programa tivemos a satisfação de vermos muitos policiais militares levarem frutas, verduras e peixes para os seus lares, a fim de saciarem a fome dos filhos; tudo a baixo custo. Esse privilégio, porém, não foi cultivado pelos comandantes seguintes da corporação, causando uma tremenda falta na mesa de muita gente.

 

 

 

 

 

Eleição do sargento Gil

 

 

N

asceu do Grupo Renovador a iniciativa sobre o lançamento de um sargento candidato à presidência da Sociedade Beneficente dos Subtenentes e Sargentos da Polícia Militar - SBSS - sendo, inicialmente, apresentado o nome do Sargento Francisco Félix de Lima, o qual não aceitando apresentou o nome do Sargento Gil Xavier de Lucena.

Lançamos a candidatura de Gil, que teve boa aceitação pelos sargentos, também agradando ao Coronel Luciano, não havendo oposição.

 Gil foi eleito e constituiu a sua diretoria, destacando-se como diretores Francisco Félix, João Xavier Filho (irmão de Gil),  Júlio Ribeiro da Rocha (o autor desta obra) e Antônio Batista Gomes.

A posse da nova diretoria ocorreu no mês de junho de 1963. O sargento Gil, que desfrutava de largo conceito perante a sociedade local, especialmente no mundo intelectual, convidou várias figuras ilustres para a sua festa de posse, razão pela  qual despertou à atenção de alguns segmentos do alto escalão da corporação, tendo em vista que a Polícia Militar encontrava-se com o moral em baixa, sem nenhum prestígio perante a sociedade.

Existia uma verdadeira manipulação do Comandante Geral da Polícia Militar junto aos poderes do Clube dos Sargentos. Os associados elegiam o Conselho Deliberativo que se constituía de 12 sócios, o qual  elegia o Presidente e o Vice da Diretoria Executiva. Mas teria que ser um candidato do comando e subtenente. Eleito o candidato do comando, o mesmo conselho mandaria uma lista com os nomes de 3 subtenentes para o comandante escolher o Presidente do Conselho Fiscal.

Fiz uma campanha para reformar o estatuto social da entidade, a fim de acabar com as intervenções do comando, cujo objetivo maior seria o de manter a classe amordaçada. Atendendo minha  proposta, que fora assinada por dezenas de sócios, o Sargento Gil convocou uma assembléia, sendo o estatuto reformado. Eliminamos o Conselho Deliberativo, e o Presidente e o Vice-Presidente da Diretoria Executiva, assim como o Presidente do Conselho Fiscal passaram a ser eleitos pelos sócios em assembléia geral.

O comandante não gostou da idéia e ameaçou intervir na assembléia, mas os sócios o proibiram comparecer à assembléia, bem como do seu representante, e ainda, colocaram um aviso à entrada do clube, que dizia textualmente:

“Fica proibida a entrada do Comandante Geral ou do seu represente legal”.

Ele não foi, preferindo, contudo, mandar um oficial, que ao ler o aviso, deu meia-volta e desapareceu.

Não fazia muito tempo da posse de Gil quando os sargentos da Polícia Militar do Estado do Piauí decretaram greve em prol de melhores salários, com ampla divulgação na imprensa nacional.

A diretoria do sargento Gil enviou um telegrama aos sargentos daquele estado, hipotecando-lhes irrestrita solidariedade, cujo documento foi lido sucessivas vezes pelas rádios da capital potiguar, bem como publicado pelo jornal de maior circulação no estado.

A atitude assumida pelos sargentos resultou em inúmeras providências adotadas pelo Comando Geral da Polícia Militar, dentre as quais a instauração de Inquérito Policial Militar com o objetivo de enquadrar os diretores da associação.

No mesmo dia desta medida, o coronel Luciano desceu do seu gabinete e foi direto ao Corpo da Guarda do Quartel. De lá mandou chamar o presidente Gil que o atendeu de imediato.

 Luciano determinou ao sargento Comandante da Guarda que recolhesse Gil ao xadrez, porém, foi surpreendido com a solidariedade de todos os diretores da associação que incontinente se apresente ao comandante para serem recolhidos também.

Luciano recuou na punição ante a pressão dos sargentos, preferindo voltar, às pressas, ao seu gabinete.

No dia seguinte, por ocasião da revista matinal à tropa, o coronel Luciano sentiu-se mal e conduzido apressadamente  ao hospital da corporação,  onde foi examinado pela Junta Médica daquele hospital, que o proibiu,  por 30 dias, de subir as escadas de acesso ao seu gabinete.

 

 

 

A Casa do Sargento

 

 

T

ão logo ocorreu a posse da nova diretoria, fomos convidados  para uma reunião que se realizaria na Assen - Associação dos Subtenentes e Sargentos do Exército em Natal. Chegamos à hora marcada. Tratava-se de um encontro dos sargentos das quatro forças, tendo em pauta vários assuntos, dentre os quais  a situação nacional.

Faltou espaço!

Abrindo os trabalhos, usou a palavra um sargento da Aeronáutica, o qual  se  referiu  sobre  a  finalidade  daquela  reunião  e  apresentou os companheiros que haviam chegado de Brasília, de São Paulo, e do Rio de Janeiro, com a finalidade de participarem daquele encontro. O orador, num longo e eloqüente discurso, explicou que o planejado evento tinha  o objetivo de fundar uma filial da Casa do Sargento, já existente em quase todos os estados, com sede no Distrito Federal.

O segundo que falou foi o representante da diretoria da matriz daquela instituição. O tema principal, evidentemente,  abordado foi a importância da entidade de classe recentemente fundada, tendo como finalidade essencial a união dos sargentos das Forças Armadas e Polícias Militares do Brasil. Encerrando o seu discurso, submeteu à apreciação dos presentes a criação da filial no Rio Grande do Norte. Foi aprovada, à unanimidade.

Sucederam-se outros oradores. Todos bons! Com veemência defendiam a união dos subtenentes e sargentos. Deram um banho de conhecimento sobre a realidade brasileira. Tudo que eles falavam era só para o bem do Brasil. Divulgaram a relação de vários livros existentes nas livrarias e bancas de revistas. Leram trechos de alguns daqueles livros.

Para encerrar o evento, foi eleita a diretoria representativa no Rio Grande do Norte, cabendo a primeira secretaria a um companheiro da Polícia Militar, que lavrou a sua primeira ata num livro destinado para tal fim.

Casa do Sargento, criada por um segmento militar visto como a espenha dorsal da tropa,  foi motivo de tremenda dor de cabeça para as autoridades militares de todo o país.

Os comandantes militares, especialamente, entendiam que os sargentos estariam a poucos passos para efetivarem um movimento nacional, considerando a valocidade como os fatos se desenrolaram.

 

 

 

Gil rejeitou ser oficial

 

 

V

árias propostas dos sargentos reivindicando reajuste salarial foram encaminhadas ao governo, o qual continuava indisposto sem abrir espaço a uma negociação.

A diretoria da associação realizou sucessivas reuniões dentro de poucos dias com o coronel Luciano, cobrando dele uma posição mais enérgica. Na última reunião, o comandante bastante chateado, falou:

n Eu já falei com Aluízio!!...

n E qual foi a resposta, coronel? - perguntou Gil.

n Ele disse que vai estudar.

n Mas estudar até quando, comandante? – indagou Gil.

No dia da última conversa com o comandante, que não apresentou nada de positivo, os sargentos exigiram de Gil uma atitude mais concreta e que fosse capaz de gerar impacto perante as autoridades e à opinião pública, visto que Aluízio não estava dando a mínima às propostas apresentadas.

O comandante ao tomar conhecimento sobre o firme propósito dos sargentos, e  que a tropa seguiria os seus passos, foi correndo ao Hospital da Polícia Militar onde Gil trabalhava como burocrática. Lá no hospital, trancou-se com Gil no gabinete do diretor, querendo que ele desistisse de levar avante as pretensões dos sargentos. Foram duas horas  de  diálogo  sem  sucesso.  Concluindo,  o coronel ofereceu-lhe o curso de oficial da corporação com tudo pago pela Polícia Militar - do espadim à farda - inclusive sem fazer os exames de seleção, considerando que Gil era um intelectual.

Ele, que era homem de muita fibra, não cedeu à proposta do comandante e com absoluta convicção respondeu para Luciano que jamais abriria mão, pois o mesmo era o representante dos sargentos, e em hipótese alguma os trairia. E com muita coragem acrescentou:

“Coronel, vai chegar a hora que nós deixaremos o senhor de lado, por que o senhor até agora não tem conseguido resolver nada sobre as nossas reivindicações junto ao governador Aluízio”.

Aquela resposta deixara o coronel Luciano profundamente amargurado, levando-o  retirar-se sem dizer mais uma só palavra, pois ele percebeu que estava encurralado pelos sargentos, que  não aceitavam mais as  desculpas procedentes do Palácio da Esperança.

 

 

 

Prisão do sargento Estelito

 

 

U

m fato novo aconteceu com o sargento Miguel Estelito de Sousa, que era Delegado de Polícia na Cidade de Montanhas, no interior do estado.

Estelito conquistara a simpatia do povo da cidade. Ele prestava assistência à população carente com serviços de enfermagem e distribuição de medicamentos. Sua fama de bom policial e cidadão de bem se espalhou pelo município e cidades vizinhas, o qual era procurado por todos, que os atendia sem distinção de cor, religião ou política.

O nome do sargento delegado passou a ser cogitado,  com ampla divulgação e aceitação, como candidato à prefeitura local, causando inveja aos líderes políticos e correligionários do Governador Aluízio Alves, ao qual solicitaram a demissão imediata do sargento delegado.

Aluízio mandou demitir o sargento Miguel Estelito e recolhê-lo ao Quartel do Comando Geral da Polícia Militar, cujo policial fora punido com 30 dias de prisão e recolhido a um xadrez imundo com dois metros quadrados.

Sua prisão gerou grande revolta não só aos subtenentes e sargentos, mas, especialmente, no meio da tropa vez que o policial militar preso era bastante admirado pelos praças da instituição policial militar.

A atitude de Aluizio provava que era falsa toda aquela essência de homem bom. E que desde o início do seu governo, mostrara o seu descontrolado desejo de perseguir o servidor público, o fazendo, contudo, com maiores proporções  contra os policiais militares.

A notícia sobre a prisão do sargento Estelito causou indignação à população da cidade de Montanhas, bem como perante toda a sargentada das Forças Armadas.

Os sargentos da Força Aérea Brasileira, ao tomarem conhecimento, foram visitar o seu colega policial militar. Pararam um ônibus bem grande da FAB, conhecido  como “papa fila”,  em  frente  ao portão das armas do Quartel da Polícia Militar. O veículo estava lotado, mas só desceram 12 sargentos, os quais procuraram o oficial de dia que era o lº tenente Pedro Rodrigues dos Santos, a quem solicitaram visitar o sargento Estelito.

O tenente ficou assustado com a presença dos sargentos de outra força querendo visitar um companheiro da Polícia Militar, numa demonstração de calorosa solidariedade humana, coisa que, aliás, sempre estava em falta na Polícia Militar, mais precisamente no oficialato.

Os sargentos foram levados à presença do coronel Luciano, que surpreso com a manifestação daqueles sargentos, falou rispidamente:

“Eu estranho muito esta presença coletiva de vocês aqui, pois não é comum visitarem seus colegas presos disciplinarmente em outra unidade”.

Pelas etiquetas de identificação - crachás - o coronel Luciano anotou os nomes de guerra dos sargentos, mandando-os que fossem visitar o seu colega preso, mas no dia seguinte remeteu ofício ao coronel Salema, Comandante da Base Aérea, ao qual informava ser um ato de indisciplina o que os seus comandados haviam praticado.

O coronel Luciano, aquele homem íntegro que soubera manter o princípio da autoridade, começara a perdê-lo perante os seus comandados. E foi vivendo este quadro que o comandante mandou chamar o sargento Gil, determinando recolhê-lo à prisão. Porém, mais uma  vez, recuou em sua decisão, pois  os diretores invadiram o gabinete do comando e avisaram que o seu presidente só iria preso se eles fossem também.

A visita inesperada dos sargentos da FAB botou mais lenha na fogueira da tropa enfurecida. Com a autoridade em queda livre, o coronel Luciano passou a ser desacreditado perante todos, por conseguinte, a sua palavra não era levada em consideração. E os policiais militares só acreditavam na posição que o sargento Gil tomava.

Vítima da miséria que assolava os seus lares com freqüentes internamentos de seus filhos no hospital da corporação, cujos diagnósticos só registravam desnutrição, os policiais esperavam, tão-somente um comando saído da boca do seu líder - o sargento Gil Xavier de Lucena.

 

 

 

Estelito forçado a pedir baixa

 

 

A

pós ser posto em liberdade, Miguel Estelito passou a ser vítima de permanentes perseguições - coisa que se fazia muito bem na corporação.

Reiteradas vezes ele foi chamado pelo oficial de gabinete do comando geral, que lhe entregava um documento devidamente datilografado para assiná-lo requerendo a sua baixa das fileiras da Polícia Militar. O sargento, contudo, se recusava fazê-lo. O oficial, sem êxito, comunicava ao seu comandante que o sargento Estelito se negava a assinar o documento. Depois de várias tentativas sem sucesso, o mesmo oficial de gabinete, por determinação superior, mandou chamá-lo  e com o dito requerimento nas mãos, foi explícito:

“Assine aí, doutor!! Ou você assina, ou será expulso da Polícia! Escolha!!...”

O sargento recusou-se assiná-lo. Ele, que não tinha outro meio de vida, e pai de família, resistia em não assinar o tal requerimento. As pressões dos “puxa sacos” do comandante, não lhe davam folga. Todo dia, Miguel Estelito estava enfrentando uma verdadeira prova de fogo, pois na corporação existia muita gente que, a fim de agradar a quem estava no comando, vendia até a sua alma ao diabo.

O maior receio de Miguel Estelito era o de ser expulso. A expulsão, à época, causava pavor. Era um ato triste e perverso. Horroroso! Deprimente! Colocavam o expulso em frente à tropa formada. Sua farda era rasgada, deixando-o só de cueca, enquanto a tropa, obedecendo a um comando dado através do toque de cornete, virava-lhe as costas e a banda de corneta repinicava, melancolicamente, os seus taróis. E, o cidadão saia escoltado para ser entregue à Chefatura de Polícia, que depois virou Secretaria de Segurança Pública;  Secretaria de Defesa Social; e mudou de nove para Segurança Pública e Defesa Social. 

 O cidadão expulso da PM seria fichado como mal elemento pela Chefatura de Polícia e conseqüentemente impedido de conseguir um emprego ou fazer concurso público durante dois anos.  E Ainda ficava preso injustamente por alguns dias ou semanas.

Estelito temia ser vítima dos atos bárbaros praticados à sanha da lei. Sem nenhum respeito ao sentimento humuno.

Oh, que coisa cruel!

O oficial de gabinete, contudo, não desistiu. E seguindo ordens expressamente severas, mandou chamar o sargento Miguel Estelito, asseverando-lhe:

“O comandante não quer nem lhe vê. Assine aqui este requerimento e não diga nada, caso contrário, você será expulso amanhã. Assine!!...”

Não teve outra alternativa para o sargento, que assinou o requerimento, sendo submetido, de maneira desumana à tamanha injustiça.

O coronel Luciano enfrentando a pressão dos sargentos e a insatisfação da tropa, esqueceu-se de mandar publicar a baixa do sargento Estelito no boletim da caserna, ocorrendo um retardamento de meses.

 

 

 

Gil é pressionado pela tropa

 

 

N

o Quartel do Comando Geral, os policiais não se entendiam. Os quais viviam num clima de agitada insatisfação. Com o moral em baixa, a tropa não contava com a possibilidade de uma melhoria salarial, porquanto na interpretação deles o   comandante geral da corporação os abandonara.

A visão dos policiais não estava correta. Luciano é que não teve prestígio suficiente junto ao governador Aluízio Alves, que não lhe dava ouvidos às reivindicações apresentadas.

Nos últimos dias do mês de agosto de 1963, a situação chegou ao seu ponto crítico e saíra mesmo fora do controle. Os sargentos desesperados procuraram o presidente Gil, cobrando-lhe, mais uma vez, uma posição firme e definitiva.

Todos os dias o serviço médico registrava casos de desmaios de fome, dos quais eram vítimas os policiais militares. O índice de tuberculose chegara a um percentual altíssimo, causando espanto ao serviço médico da Polícia Militar.

 O decreto para incorporação abria e fechava sem aparecer uma só pessoa para servir à PM.

Os sargentos solicitaram uma Assembléia Geral dentro de 48 horas. De imediato, o sargento Gil atendeu ao pleito dos seus companheiros. À reunião estiveram presentes deputados do governo e um nutricionista. Este último deu o seu parecer  num documento que os sargentos dirigiram ao governador Aluízio por intermédio, ainda, do coronel Luciano, sem, no entanto, receberem qualquer resposta satisfatória sobre as suas  reivindicações, senão aquela já bastante conhecida:

“Aluízio disse-me que estava estudando!"

Os sargentos com os seus soldados ficaram mais revoltados e decepcionados diante daquele grande descaso do governador Aluizio, e  a tropa, com mais fúria, jogava toda a culpa no coronel Luciano, acusando-o acintosamente, cara-a-cara, como responsável pelo clima de desespero que tomara conta da caserna e dos lares milicianos, com reflexos desastrosos perante a opinião pública.

Os sargentos e a soldadesca exigiam que o sargento Gil tomasse uma atitude que fosse capaz de causar maior impacto junto ao governo e ao povo, já que, até então, não havia qualquer providência a fim de equacionar o aquele cruciante problema.

 

 

 

 

Quadro de miséria

 

 

O

s salários  baixíssimos não despertavam interesse para o cidadão servir à instituição. As inscrições para a seleção do curso de oficiais abriam e fechavam por falta de candidatos. Ninguém queria se inscrever. Ser oficial seria uma péssima escolha. Não existia perspectiva de melhora nem para quem chegava ao coronelato, isto porque  Aluízio ao assumir o governo houvera dado um golpe arrasador nos coronéise; e demais oficiais, os quais de acordo com a Lei Estadual nº 1.416, do governo Silvio Pedrosa, tinham os seus vencimentos equiparados aos  vencimentos do juiz de primeira instância e estabelecia tabela proporcional para oficiais, enquanto o resto da tropa recebia o salário mais baixo do país.  O governador mudou aquele referencial, reduzindo os valores do maior posto em mais de cinqüenta por cento, bem como dos demais oficiais.

Com os vencimentos minguados, a maioria dos oficiais que desfrutava “status” bem diferente da tropa, ficara omissa à posição do coronel Luciano e de camarote apreciava a queda de seu comandante.

O quadro de miserabilidade que vivenciava a Policia Militar chegava às páginas dos jornais de grande circulação do Estado do Rio Grande do Norte. O jornal que deva maior destaque era A ORDEM, de propriedade da Arquidiocese Metropolitana.

Chegamos ao mês de setembro. Os jornais não falavam noutra coisa, senão sobre o quadro aflitivo que estavam vivendo os policiais militares.

As manchetes chamavam à atenção dos leitores. O jornal A Ordem publicava:

“FOME E HUMILHAÇÃO NA POLÍCIA MILITAR”.

De fato, na Polícia Militar existia fome, que precisava, urgentemente, ser saciada. Um soldado da Polícia Militar ganhava de vencimentos menos de um salário mínimo da região, e um 3º sargento, também, não chegava lá.

Os policiais não compravam nada fiado no comércio. Eles eram escorraçados da sociedade. Dos policiais seria impossível lhes exigir fidelidade à lei e aos regulamentos da caserna, sem haver suborno e corrupção.  Não havia possibilidade de resistir aos anseios que a miséria lhes proporcionava. Sobre este aspecto, surgiam punições diariamente. Pois a penúria conduzia oss homens ao desespero, que procuravam refúgio através de atos desonestos, ultrapassando as fronteiras da razão.

 

 

 

A parada militar

 

 

C

hegou o dia 7 de setembro - dia da Parada Militar. Foi num sábado. Enquanto acontecia o desfile, a população lia nos jornais da cidade a situação dramática dos policiais militares. As manchetes enriquecidas por toda aquela situação deplorável que efetava profundamente a vida da comunidade miliciana, deixavam a população pasma.

O jornal que as publicava com fervoroso destaque era o da igreja Católica - A Ordem -, cujo título colocava em xeque-mate o descaso do governo diante da função policial de um pai de família faminto.

A polícia militar que carregava através dos tempos uma história cheia de glórias e tradições, via os seus integrantes  enfrentarem um dos piores dramas da corporação: O DRAMA DA FOME.

Dos jornais destacamos estes trechos:

“... Logo mais, os bravos soldados da Polícia Militar estarão desfilando, no seu uniforme de gala, pelas ruas da cidade, comemorando a  data  magna  da  nacionalidade.  Se  desviarmos a atenção da vistosa farda e a fizermos nos rostos, havemos de descobrir os reflexos da subnutrição desses homens, nos olhos encovados, nas rugas prematuras, na expressão de fadiga. Eles são vítimas de uma injustiça social com que urge terminar”.

Chocante mesmo era este destaque  em outro jornal:

“Ser soldado da polícia é um título de mendicância. Ouvimos de uma freira que dirige uma casa de assistência num dos bairros pobres da cidade, que quando aparece alguém da família de um soldado pedindo auxílio, surgem logo os protetores voluntários: IRMÃ, AJUDE ESSA MULHER, QUE O MARIDO É SOLDADO DA POLÍCIA...”

E finalizava, dizendo:

“A Polícia Militar é hoje um regimento de homens infelizes, párias sociais..."

 

 

 

Reunião do dia 9 de setembro

 

 

O

 Quartel da Polícia Militar estava transformado num caldeirão de pólvora pronto para explodir. Faltava apenas a chama. E esta foi a reportagem do dia 7 de setembro.

No mesmo dia da Parada Militar, os sargentos solicitaram uma assembléia geral para o dia 9 seguinte. A reunião foi anunciada através de rádios, jornais e carros de som.

Na manhã do dia nove, os sargentos formavam aqueles grupinhos se organizando para a reunião no interior do quartel, que seria realizada à noite, na sede da associação.

O coronel Luciano ao tomar conhecimento sobre a convocação tentou impedir fazendo ameaças de deixar toda a tropa impedida dentro do quartel, mas, foi aconselhado por um de seus assessores que não o fizesse, vez que os sargentos estavam determinados e fariam a reunião a todo custo,  porém, prolongou o expediente até às 9 horas da noite.

Do quartel, seguiram os sargentos diretos para a sua associação. Exatamente, às 22 horas o presidente Gil deu  abertura aos trabalhos. Na ocasião, a mesa diretora elaborou um documento reivindicando 100% de reajuste nos vencimentos, que seria entregue ao coronel Luciano para fazê-lo chegar às mãos do governador Aluisio, no dia seguinte.

Mas, surgiram exaustivos debates durante a redação do documento. Por fim aprovado! Seguindo-se a tomada de assinatura dos presentes no documento que recebeu o nome de memorial.

Após tudo pronto, foi colocada em votação que atitude tomariam os sargentos junto à tropa quando chegassem ao quartel naquela manhã.

Surgiram duas propostas. O subtenente Antônio André Sobrinho sugeriu que se entregasse o documento e a tropa continuava trabalhando normalmente; e a outra proposta foi de minha autoria, que seria entregar o documento e aquartelar a tropa, pois, sem sucesso, nós já estávamos cansados de entregar documentos ao governo.

Depois de caloroso debate, foi aprovada a proposta de aquartelamento. Continuando os trabalhos da assembléia, elegeram uma comissão composta de Gil Xavier de Lucena, Antônio André Sobrinho, Antônio Batista Gomes e Júlio Ribeiro da Rocha, que ficaria à frente de todo o movimento paredista.

Antes de encerrada a reunião, dois sargentos que não haviam assinado o documento, saíram às escondidas. Eles foram a pé, e bem distante, à residência do coronel Luciano, a fim de comunicar-lhe sobre tudo que estava acontecendo. Os miseráveis, todos casados, sofrendo como toda a tropa, mas, não deixaram aquela mania desgraçada de  “puxa-sacos”; de traidores; de “dedos duros”.

Quando se notou a falta deles, alguns companheiros queriam sair em sua perseguição, e lhes aplicar uns   tabefes, mas foram desaconselhados e desistiram.

 

 

 

 

 

Caminhada para o quartel

 

 

F

indos os trabalhos às 4 horas da manhã, os sargentos seguiram em passeata para o Quartel do Comando Geral da Polícia Militar. As  ruas e avenidas foram ocupadas pelos sargentos. Muita gente acordava e abria as portas, encorajando-os a lutar por seus direitos que estavam sendo negados pelo governador do estado. 

No quartel, após o toque de alvorada, os sargentos chamaram o soldado Samuel Sebastião de Souza,  corneteiro de dia,  ao qual  determinaram que, a partir daquele momento, ele não tocaria mais naquela corneta sem a autorização dos sargentos. E ao mesmo tempo, um grupo de sargentos designado pela comissão determinava aos soldados que fossem para o refeitório dos cabos e soldados, deixando o quartel deserto.

O aspirante a oficial Irineu Raimundo de Sousa, que era o oficial de dia, mandou chamar o corneteiro Samuel ao qual determinou que fosse executado o toque de formatura geral, entretanto, recebeu a resposta de que não daria um toque sem a determinação dos sargentos. O aspirante insistiu e o soldado Samuel foi taxativo:

“Só tocarei com ordem dos sargentos”.

Ainda alheios ao que estava acontecendo, porém, fiéis às ordens recebidas, os praças não hesitaram em obedecer aos seus sargentos. E o salão do refeitório ficou superlotado. O quartel ficou um deserto, enquanto o sargento comandante da guarda, que se manteve no seu posto, seguindo orientação da comissão, mandava os soldados que iam chegando atrasados seguirem para o rancho.

 

 

 

 

A chegada do comandante

 

 

À

 hora de sempre - O7:30 -, chegou o coronel Luciano. Como de praxe, a guarda do quartel formada o recebeu, pois o respeito hierárquico permanecia para alguns casos.

O aspirante Irineu foi se apresentar ao coronel comandante, a quem comunicou sobre os acontecimentos, o qual respondeu:

“Já estou sabendo, doutor!!...

O comandante dirigiu-se direto ao refeitório dos praças. Eis, que ao chegar à entrada a sua face estava pálida. Anadava meio trôpego. Parou bem à frente da tropa. Ficou meio indeciso. E mordia os lábios. Virou-se para o seu motorista que se encontrava ao seu lado,  mandando-o  estacionar  o carro oficial do comando em frente ao refeitório. E, finalmente, dirigiu-se aos seus subordinados rebelados que o aguardavam num silêncio profundo, perguntando aos gritos:

“O que está havendo aqui!?”

Nesse ínterim, os sargentos Gil e Félix, o primeiro com o documento na mão dirigiram-se ao coronel, comunicando-lhe sobre o fim daquela reunião, tendo Gil começado fazendo uma explanação sobre o conteúdo daquele documento, quando Luciano interrompeu dizendo:

“Não quero discurso, sargento! Não me empenharei junto ao governador, pois serei meramente um portador deste documento, e se começarem com besteira, eu chamarei o Exército".

Indignados, os policiais gritaram:

“Pode chamar o Exército!!. A partir de agora vamos cruzar os braços!!”

O coronel estava com a sua fisionomia se transfigurando. Sua face ficou mais pálida. E os seus lábios já bem vermelhos de tanto mordê-los. Ele deu meia-volta, dirigiu-se ao seu veículo e seguiu destino ao Palácio do Governo, a fim de entregar o mencionado documento ao Governador Aluisio.

Levando-se em consideração a postura assumida pelo comandante, a comissão achou conveniente recolher todo o policiamento da capital. Este trabalho começou pela Casa de Detenção, cujo comandante da aguarda era o 3º sargento Heleno Donato da Rocha, o qual retirou os policiais de todas as guaritas; colocou-os em forma junto com os de folga, e após entregar as chaves do presídio ao seu diretor, que  chegara naquela ocasião,  marchou para o Quartel da Polícia Militar.

Os policiais das Delegacias de Polícia da Capital, residência oficial do governador e Palácio do Governo, abandonaram os seus postos e juntaram-se à tropa rebelada.

Outra providência adotada foi recolher ao material bélico todo o armamento oficial existente no interior do quartel, bem como as armas particulares,  inclusive a arma da sentinela do portão principal. Toda a tropa ficou desarmada. Totalmente indefesa para enfrentar uma possível represália. Recolhidas as armas ao depósito, foi o seu cadeado fechado e selado, sendo a chave entregue ao tenente-coronel José Reinaldo Cavalcanti, subcomandante da corporação.

Naquela manhã, um fato nacional quase que nos atrapalhava, que  foi o levante armado dos sargentos da Força Aérea Brasileira, em Brasília,  os quais  seguiam a política idealista do Presidente Goulart; eles prenderam o doutor Clovis Mota, que era deputado federal pelo Rio Grande do Norte. Desse movimento, um motorista que passava nas proximidades dirigindo um veículo foi vítima fatal das metralhadoras revoltadas. O levante de Brasília foi rapidamente sufocado pelas autoridades federais e os revoltosos presos.

As autoridades militares federais queriam que o nosso caso tivesse conexão com a rebelião dos sargentos do Distrito Federal, porém, ficou comprovado estarem equivocadas. E, não passou de uma mera coincidência.

 

 

A resposta de Aluízio

 

 

A

 tropa impaciente esperava o retorno do coronel Luciano com a resposta do governador Aluízio Alves. E passaram-se horas sem Luciano dar sinal de vida. Muitos acreditavam que Aluízio atenderia ao pedido dos sargentos. A maioria, porém, dizia ter certeza de que Aluisio não daria a mínima.

Enquanto Luciano não chegava, os repórteres das emissoras de rádios, em edição extraordinária, falando do interior do quartel, anunciavam a posição assumida pelos sargentos e seus soldados.

Da sacada dos muros do quartel era grande o número de pessoas que acorriam para lá, a fim de prestar solidariedade à Polícia Militar.

Várias empresas mandaram carradas de gêneros alimentícios para o rancho dar de comer à tropa.

Perto das doze horas retornou o coronel comandante, que solicitou uma reunião com os líderes do movimento, aos quais disse:

“Aluízio mandou dizer que não parlamentava com tropa amotinada”.

Após o retorno de Luciano não demorou muito o governador mandar o deputado estadual Álvaro Mota, a fim de conversar com os sargentos, porém, o parlamentar não foi em nada amistoso, chegando a dizer que se fosse Aluízio mandaria prender todos os subtenentes e sargentos.

A afirmativa do deputado não agradou aos policiais. E o parlamentar foi expulso de dentro do quartel,   aos empurrõs e ponta-pés.

À noite do primeiro dia, o governador Aluízio mandou o doutor Olavo Montenegro, deputado aluizista, ir ao Quartel da Polícia Militar, com o intuito de conversar com a comissão. O parlamentar, após ser cientificado sobre a real situação, disse que reconhecia serem justas as reivindicações dos sargentos, e que  ele iria se esforçar junto ao governador, porém, caso não fosse atendido iria lamentar muito. De fato, lamentou, porque Aluízio não atendeu as reivindicações dos sargentos, nem tampouco os apelos de seu deputado.

 

 

 

Segundo dia de greve

 

 

N

o segundo dia, o primeiro oficial que aderiu ao movimento dos sargentos, através de telegrama, foi o segundo tenente Iarandir Aguiar - o major, filho do senhor Luiz Sátiro -, o qual estava servindo em Mossoró.

Naquele primeiro dia, 12 sargentos da Aeronáutica se organizaram e foram ao Programa Aliança para o Progresso, criado pelo Presidente Kennedy dos Estados Unidades, destinado às nações pobres, onde conseguiram alimentos em quantidade e saíram num caminhão distribuindo gêneros alimentícios nas residências dos policiais militares.

Os sargentos da FAB contaram com o apoio da assistente social da Polícia Militar,  Maria das Dores Costa, e do sargento Francisco Félix de Lima, os quais se empenharam dia e noite para minimizar o sofrimento nos lares milicianos.

Félix e a assistente social, além de colaborarem na distribuição dos alimentos, também levaram toda a solidariade precisa à família dos policiais.

O governador, sem sucesso nas suas tentativas de enfraquecer o movimento, mandou o seu Secretário de Segurança Pública, coronel do Exército Ulisses Cavalcante, ao Quartel da Polícia Militar, com o propósito de amedrontar  os sargentos.

A tropa foi colocada em forma para assistir o que o secretário iria dizer, o qual, todavia, não apresentou nada de positivo senão a mesma demagogia de Aluízio. Muitas conversas bonitas. Insatisfeito com tanta conversa fiada,  o subtenente Alfredo Batista de Oliveira deu um passo à frente da tropa e gritou:

n Excelência, dá licença!?

n Pois, não.

n  De palavras bonitas já estamos de barrigas cheias. Tropa, sentido! Fora de forma, marche!!

Com o comando, a tropa deu as costas para o secretário, enquanto um grupo de soldados saia com Alfredo nos braços, como herói.

Já ao anoitecer, começaram a chegar os policiais das cidades do interior. E assim, foram abandonadas as cidades que distavam até 200 quilômetros da capital.

Alguns oficiais liderados pelo capitão capelão da corporação, padre Manoel Barbosa de Vasconcelos, fizeram uma reunião entre si e em seguida procuraram a comissão, à qual comunicaram a sua adesão ao movimento. Após a atitude do grupo de oficiais, todo o oficialato solidarizou-se com o movimento paredista, ficando contra só o coronel Luciano.

O movimento contou com o apoio das entidades representativas de classes: Sindicato dos Correios e Telégrafos, da Construção Civil, dos Sapateiros, dos Artífices, dos Costureiros, e associações diversas.

As sacadas dos muros do quartel viviam superlotadas por pessoas do povo, amigos e familiares dos policiais militares, que se deslocavam para lá e manifestavam-se favoráveis à greve dos policiais.

Terceiro dia de greve

 

 

L

ogo no primeiro expediente, assumiu o comando da Guarnição Mista de Natal, o general Omar Emy Chaves. Naquela época o Exército comandava as demais armas.

Antes mesmo que o general assumisse, o governador Aluízio fizera a cabeça do novo comandante militar, colocando-o na linha de frente contra os sargentos da Polícia Militar com a missão de liquidar o assunto através de uma proposta.

No início da tarde do seu primeiro dia do comando, o general Omar mandou chamar uma comissão de oficiais e outra de sargentos. Integraram a comissão de oficiais o capitão capelão padre Mano-el Barbosa, o major Antônio Olegário e o aspirante Cícero Figueiredo de Mendonça; e a de sargentos fora composta pelos sargentos Antônio Batista Gomes, Gil Xavier de Lucena, Paulo de Castro Pereira e Júlio Ribeiro da Rocha.

A situação ficou complicada quando a tropa tomou conhecimento de que o sargento Gil  iria falar com o general. Temerosos, os policiais achavam que Gil seria preso no gabinete de Omar Emy Chaves. Depois de muita explicação a tropa acalmou-se, entretanto, quando o seu o líder entrou na viatura que nos levaria à presença da autoridade militar, os policiais suspenderam a viatura, deixando-a com os seus pneus rodando livres. E só a colocaram no chão quando o sargento Gil desceu do veículo e ficou com eles.  E em seu lugar foi o subtenente Antônio André Sobrinho que se apresentou voluntariamente.

Seguindo-nos em outro veículo ia a comissão de oficiais. Chegamos ao Quartel General. A comissão de sargentos foi a primeira a ser recebida pelo general, que pensando está tratando com homens rebeldes e indisciplinados, deu início ao seu diálogo em tom bastante amistoso que se desconfiava, ao dizer:

“Meus filhos, aqui não está o general Omar Emy Chaves, e sim o cidadão Omar Emy Chaves. Podem me chamar de você. Como quiserem! O governador mandou lhes oferecer 70% (setenta por cento) de aumento, mas não de imediato, pois é um assunto a ser estudado posteriormente, porque o estado vive em dificuldade financeira”.

A conversa foi interrompida pelo sargento Antônio Batista Gomes, que retirando um recorte do jornal Diário de Natal do seu bolso, no qual dizia que o Estado do Rio Grande do Norte estava com estouro na arrecadação,  falou ao general:

n  Excelência, dá licença!?

n  Pois, não.

n  Excelência, o senhor não foi informado com precisão sobre a real situação financeira do estado. Olhe, aqui diz que o estado tem dinheiro sobrando.

O general ficou todo sem graça. Foi-lhe feito um convite para comparecer ao Quartel da Polícia Militar, a fim de conversar com a tropa e convencê-la a aceitar a proposta do governo, o qual respondeu:

n Não vou! Tenho medo de ser desmoralizado.

n  Não, excelência! Isto não acontecerá. O senhor pode ir despreocupado. A tropa não trabalha enquanto o governo não atender ao nosso pedido, mas existe disciplina - esclareceu Antônio André.

O general já com o tom da voz mudado, sem aquela de fidalgo, respondeu:

“Não! Não vou!”

Finda a reunião sem êxito, a comissão deixou o gabinete para dar lugar à de oficiais, que sabedora da nossa posição, também rejeitou a proposta.

Retornamos ao quartel e reunimos a tropa, que ansiosamente aguardava-nos. O capitão capelão anunciou o resultado do nosso encontro com o general, a qual, mais uma vez, ficou indignada com o descaso do governador Aluízio, pois a resposta continuava sendo a de sempre: IA ESTUDAR A POSSIBILIDADE.

 

 

 

 

 

 

Telegrama ao Ministro da

Justiça

 

 

O

 governador Aluízio apanhou o helicóptero do Estado e foi sobrevoar o Quartel da Polícia Militar. Ele viu que não existia um soldado armado, nem  mesmo  com  uma  tora  de  pau.  Viu  também que até a sentinela do Portão das Armas estava desarmada, e a tropa ordeira, que desejava tão-somente uma vida digna.

De volta ao seu palácio, o senhor Aluízio Alves mandou um telegrama ao doutor Abelardo Jurema, Ministro da Justiça, em cujo documento informava que os sargentos da Polícia Militar, sublevados pela política partidária, todos bem armados com os seus soldados, estavam em greve atemorizando a população, inclusive ameaçando derrubá-lo do governo.

A desastrosa posição assumida por Aluízio foi severamente criticada por um de seus assessores que lhe indagou:

“Governador, Vossa Excelência viu que não existe ninguém armado dentro do Quartel da Polícia Militar, mas mesmo assim o senhor vai mandar este telegrama"?

Aluizio respondeu impiedosamente:

“Vou, sim!...”

O ministro ao receber o telegrama não mandou averiguar se era verdade tão grave denúncia. E de maneira precipitada, tomou  uma medida no mínimo arbitrária, ao baixar expediente ao Ministro da Guerra determinando que as Forças Federais tomassem o Quartel da Polícia Militar, e em caso de resistência, bombardeá-lo, para em seguida tomá-lo de assalto com o emprego de todo tipo de armas.

 

 

 

 

 

Quarto dia de greve

 

 

C

omo desde o início, a assistente social Maria das Dores Costa e o sargento Francisco Félix de Lima continuavam visitando os lares dos policiais militares, levando aos seus familiares conforto espiritual, pedindo calma e confiança, pois estavam todos buscando uma solução benéfica.

Pela tarde, um deputado da bancada oposicionista alugou um carro de propaganda  do  senhor  Tarcísio  para  divulgar pelas ruas da cidade que a Polícia Militar estava passando fome e defendia uma causa justa. Mas o veículo foi apreendido, e Tarcísio preso e conduzido ao 16º Regimento de Infantaria do Exército, onde ficou detido até segunda ordem.

Ao anoitecer, os sargentos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica telefonaram para o sargento Gil avisando que na madrugada do dia seguinte  - 14 de setembro -, as tropas federais cercariam o Quartel da Polícia Militar e ao amanhecer  seria ocupado.

A notícia apanhou  a tropa de surpresa, pois o assunto, que era segredo da comissão, chegava ao conhecimento de todos. A comissão reuniu os policiais na quadra de esportes da corporação, oportunidade em que o padre Manoel Barbosa orientou a tropa como deveria se comportar diante das Forças Armadas, ficando determinado que os nossos irmãos de farda seriam recebidos de forma ordeira.

Pouca gente dormiu naquela noite. Antônio André, Antônio Batista Gomes, Fernando Dantas Ferreira e Gil foram dormir lá pelas 2 da madrugada, no Hospital da Polícia Militar.

Apesar de quase todos os policiais se manterem acordados, não se ouvia uma só palavra. Estavam todos atentos ao menor ruído. A tensão ficou a mil. Não se mexiam nem os galhos das mangueiras que existiam em frente ao portão das armas. A sentinela desarmada e totalmente indefesa; impávida, ficava num pé e noutro. Com poucas luzes, com o pátio meio escuro;  muitos agachados procuravam uma melhor visão, a fim de observar a aproximação de veículos com os faróis apagados, que pela zoada, dava para  perceber que se tratava de carros pesados, e paravam nas imediações do quartel.

 

 

Madrugada do quinto dia

 

 

O

 relógio do Corpo da Guarda bateu 3 horas e 30 minutos. Ouviam-se barulhos de aviões que voavam  baixo sobre o teto das residências adjacentes ao quartel;  eram os  gigantescos  B 26 da Força Aérea Brasileira, os quais com a sua barulheira   despertaram os moradores do bairro do Tirol.

A população acordou tomada de pavor. Acendiam-se as luzes das residências e apartamentos vizinhos à Avenida Rodrigues Alves, onde ficava localizado o quartel. Do interior do quartel, os policiais observavam tudo e ouviam choros de crianças e mulheres. Atentos, tomavam conhecimento  do movimento  dos moradores dos blocos de apartamentos da rua Maxaranguape. Muita gente desorientada correndo de um lado para outro, sem, contudo, saber o que acontecia.  Senhoras em completo desespero, colocando as mãos na cabeça, aos gritos de socorro.

Foi triste! Foi cruel!

Utilizando os potentes alto-falantes do carro de propaganda, que fora apreendido, um militar do Exército convidou as famílias a abandonarem, urgente, as suas residências e apartamentos, num perímetro de 500 metros e se dirigirem ao pátio do Aeroclube, que ficava bem afastado do Quartel do Comando Geral da Polícia Militar. Todos os moradores da redondeza foram se refugiar no local indicado pelas Forças Federais, as quais pensavam que os policiais militares iriam reagir à bala.

Retirados os moradores, as Forças Federais tomaram posição de guerra, instalando ninhos de metralhadoras pesadas dentro dos apartamentos, com os seus canos apontados para o Quartel da Polícia Militar.

 

 

 

 

 

 

 

Tomada do quartel

 

 

V

em amanhecendo o dia. As tropas do Exército haviam cercado o quartel com tanques de guerra, carros de combate, metralhadoras pesadas instaladas em trincheiras, barracas de campanha armadas dentro do sítio de mangueiras em frente ao quartel.

Às 6 horas, o sargento Queiroga, que integrava as tropas do Exército, adentrou ao quartel, a fim de falar com o subcomandante, coronel José Reinaldo, ao qual entregou um ofício assinado pelo general Omar Emy Chaves, cujo documento intimava-o a render-se com os seus comandados às tropas federais.

O comando de ocupação estava confiado ao coronel Mendonça Lima, Comandante do 16º Regimento de Infantaria. À distância de uns 150 metros, através do som  do dito carro de propaganda, um oficial do Exército leu o seguinte ultimato:

“COMPANHEIROS DA POLÍCIA MILITAR: DE ORDEM DO EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO DA GUERRA, DEVEIS DEIXAR  O  VOSSO  QUARTEL   DENTRO DE DEZ  MINUTOS  E  ENTRAR  EM  FORMA  COLUNA   POR SEIS, NA AVENIDA RODRIGUES ALVES, FRENTE AO PORTÃO PRINCIPAL, FRENTE PARA A IGREJA SANTA TEREZINHA. RENDAM-SE INCONDICIONALMENTE! NO CASO DE RESISTÊNCIA, VOSSO QUARTEL SERÁ BOMBARDEADO E EM SEGUIDA TOMADO DE ASSALTO. NÃO QUEREMOS DERRAMAMENTO DE SANGUE. NÓS SOMOS VOSSOS IRMÃOS”.

Finda a leitura do ultimato, três aviões B-26 da Força Aérea Brasileira passaram a sobrevoar o prédio do quartel. O pavor tomou conta de todos. Não se via uma só gota de sangue nos rostos esqueléticos e empalidecidos dos policiais militares.

Atônita, toda a tropa ficou imóvel para ouvir aquela drástica e inconseqüente determinação. Imediatamente, a tropa pacata e ordeira, sem ódio, sem ira, e acima de tudo consciente, foi, sem demora, entrando em forma no local anunciado, independentemente, de qualquer comando interno.

Naquele momento teve oficial afeito a humilhar aos seus subordinados, que invés de ir entrar em forma, borrou-se todo e correu para o sanitário.

Verificando que a ordem havia sido cumprida, o comando de ocupação chamou à sua presença, em sua barraca, o oficial e o subtenente mais antigos. E lá se apresentaram o coronel Reinaldo e o subtenente Alfredo Batista de Oliveira. O coronel Mendonça Lima os recebeu com muita fidalguia, o qual solicitou que o coronel Reinaldo entregasse as armas que os policiais estavam sendo acusados por Aluízio de portá-las. José Reinaldo, todavia, num gesto heróico, respondeu:

“A NOSSA ARMA É A FOME”.

Aos  poucos, os soldados do Exército foram se aproximando ao portão do Quartel da Polícia Militar. Divididos em grupos de combates, eles tremiam tanto que os seus fuzis só faltavam cair no chão. As laterais e a retaguarda estavam cercadas por tropas federais. Dalí era impossível alguém fugir.

A sentinela da hora, que muito mal conseguia se equilibrar, foi substituída por uma da tropa de ocupação, enquanto um capitão do Exército se dirigia com um grupo de soldados ao Material Bélico, a fim de apreender as armas. Quão, porém, foi a surpresa daquele oficial ao verificar que os fuzis estavam bem engraxados e ensarilhados e as granadas e munições em seus caixotes, o qual enxugando as lágrimas que lhe banhavam a face, exclamou:

“Com um graxeiro deste é impossível brigar!"

 

 

 

 

Chegada do general Omar

 

 

O

 coronel Mendonça Lima não havia terminado de dirigir a sua palavra à tropa, quando se aproximou um automóvel preto, de placa oficial, parando a poucos metros da tropa. Era o general Omar Emy Chaves. Baixo, usando um revólver calibre 32 à cinta, desceu do seu veículo. O qual já não estava com aquela mansidão que apresentara às comissões. E virado numa fera indomável, sem esperar que o coronel lhe apresentasse a tropa, foi logo gritando:

“Polícia Militar, só Deus sabe como fui forçado a tomar tal atitude. Você, Polícia Militar, de tantas glórias, hoje ao invés de combater, está sendo combatida. Tropa rendida!!...

O coronel Mendonça Lima, ao assistir aquelas palavras descontroladas de seu superior, levou as mãos à cabeça num gesto de reprovação. Mas, o general continuou... Desta vez para humilhar e insultar a tropa, dizendo aos estrondosos gritos:

“Tropa rendida e desmoralizada. Uma tropa rendida não é de nada. Apelei para os seus oficiais! Apelei para os seus sargentos! Apelei para você, padre, que mentiu para com sua religião. Mentiroso!!... Fugiu aos princípios religiosos. Traiu a sua a própria igreja!”

Dando esturro feito uma onça,  continuou... Olhando para o subtenente Antônio André, e, com desvairada provocação, disse-lhe:

“Apelei para você, seu líder. Líder que não tem cara de líder, não é de nada!”

Dentre outras, o general tinha a incumbência de humilhar, de desmoralizar a Polícia Militar.

A poucos metros do local, bem em frente ao Clube América, estava estacionado um corro preto de placa oficial. No seu interior o Governador Aluízio Alves que fora assistir “in loco” a humilhação da Polícia Militar.

Cumprindo determinação do general, o coronel Mendonça Lima assumiu o Comando Geral da Polícia Militar, enquanto os oficiais do Exército assumiam o comando das companhias.

O novo comandante reuniu os oficiais em seu gabinete, e com louvável polidez, cumprimentou-os individualmente, num gesto profícuo de quem tinha outra linha de conduta divergente do rancor de Omar Emy Chaves.

 

 

 

 

 

 

Chegada do general Justino

 

 

N

ão gostando do comportamento do general Omar, o coronel Mendonça Lima, já investido no cargo de novo comandante, entrou em contato com o Comandante Militar do Nordeste com sede na Capital do Recife, general Justino Alves Bastos, que foi à Natal no segundo expediente daquele dia.

O general Justino reuniu o coronel Mendonça Lima e o general Omar no gabinete do Comando Geral da Polícia Militar. Em seguida, ele conversou reservadamente e durante longe tempo com o seu auxiliar, coronel Mendonça Lima, de quem era amigo pessoal, recebendo todas as informações precisas, inclusive da alta lição de disciplina que fora dada pela tropa rendida.

Ciente sobre o procedimento tosco do general Omar, Justino o desautorizou interferir nos assuntos relacionados à Polícia Militar, determinando que o coronel Mendonça Lima, quando preciso, podia se comunicar diretamente com o Comando Militar do Nordeste.

O general Justino convocou a imprensa e distribuiu nota oficial esclarecendo à opinião pública sobre as razões da ocupação do Quartel da Polícia Militar.

Com homens do Exército assumindo todos os pontos estratégicos, o comando de ocupação, seguindo a orientação do general Justino, passou a adotar as providências necessárias. Reuniu os oficiais da corporação, oportunidade  em  que  foi  lida uma lista de policiais militares que iriam ficar presos por ter sido acusado pelo Palácio da Esperança como do comando paredista.

E pela lista, deu início à chamada dos oficiais, que se encontravam presentes:

n Major Antônio Olegário dos Santos.

n Capitão Capelão Manoel Barbosa.

n Aspirante Cícero Figueiredo de Mendonça.

Aos oficiais presos, foi-lhes determinado recolhimento ao Estado-Maior do 16º Regimento de Infantaria.

E, prosseguindo na lista, mandou chamar:

n Subtenentes Alfredo Batista de Oliveira, Afonso Gomes, Geraldo Frutuoso, e Antônio André.

n  Sargentos Antônio Batista Gomes, Gil Xavier de Lucena, Júlio Ribeiro da Rocha, José Neris Sobrinho, e Miguel Estelito.

Levados à presença do comando, fomos informados que ficaríamos presos, a fim de responder IPM - Inquérito Policial Militar - e ao mesmo tempo, apresentou-se um Oficial do Exército, o qual tinha ordem para nos recolher aos xadrezes imundos da corporação, contudo, houve a interferência do coronel Reinaldo, que após fazer um relato sobre a situação precária dos xadrezes, fomos recolhidos a um salão situado no pavilhão superior do quartel, e foram tomadas as providências necessárias para a nossa acomodação.

De imediato, foi montada uma guarda do Exército à porta da prisão sob o comando de um 3º sargento.

Outra providência adotada, urgente, foi a dispensa por 30 dias de toda a tropa, ficando fora do quartel, bem como de suas atividades profissionais.

Muitos companheiros não queriam deixar o quartel, enquanto nós estivéssemos presos, mas os aconselhamos ir para as suas casas e adotassem alguma posição se necessário.

Com a chegada do Exército, tudo mudou. O feijão e o bugol desapareceram das refeições do rancho. A alimentação tinha, acima de tudo, qualidade com frutas e verduras, coisa que não existia, pois, sempre era de pior qualidade e carente de nutrientes. No cassino dos sargentos mudou muita coisa. Até a louça. Antes a alimentação dos sargentos era servida em bandejas de alumínio cheias de sebo. Até o café era servido em canecas de alumínio queimando os lábios chega fazia bolhas. De repente, compraram  pratos, xícaras, copos e talheres.

 

 

 

 

O outro lado da história

 

 

A

s palavras grosseiras do general Omar Emy Chaves dirigidas ao padre Manoel Barbosa, no momento da rendição da tropa, submetendo-o à humilhação perante aos seus companheiros de farda e a uma grande multidão que presenciava à distância de uns cem metros, causaram repúdio à Igreja Católica, que, com veemência, protestou através dos meios de comunicação, inclusive distribuindo nota à sociedade, condenando ação do general a serviço do governador Aluízio. Em todas as missas, a Arquidiocese Potiguar mandou ler nota de  protesto sobre os maltratos e a prisão dos quais foi vítima  o padre Manoel Barbosa.

As autoridades federais,  principalmente, o general Justino Alves Bastos e  o coronel Mendonça Lima, não gostaram da história do telegrama ao Ministro da Justiça, pois na Polícia Militar não existia um só policial armado. O caso era, unicamente, fome.

O sargento Geraldo Aurélio Wanderlei, que era radiotelegrafista, nos informava sobre tudo quanto acontecia entre o Exército e o governador Geraldo Aurélio Wanderley. Ele, sendo do setor de radiotelegrafia, cuja estação ficava vizinha ao nosso alojamento, captava todas as mensagens através do código mossa - sinal usado pela telegrafia. Foi através deste código, que tomamos conhecimento sobre as severas críticas que o general Justino fazia ao governador Aluízio Alves.

 

 

 

A posição de Aluízio

 

 

Q

uerendo atender as reivindicações dos sargentos, que seria 100% de reajuste nos soldos, o governador Aluízio Alves mandou mensagem à Assembléia Legislativa, mas em forma de abono, todavia, os sargentos não aceitaram e reafirmaram o estado de greve se não fosse o reajuste nos soldos.

Temendo que os sargentos retornassem à greve, o general Justino mandou  telegrama  ao senhor Aluízio, por intermédio do serviço de rádio da Polícia Militar, em cujo documento o aconselhava que transformasse o abono em aumento real. O governador vendo que não estava recebendo a confiança do general Justino, mandou nova mensagem ao Poder Legislativo concedendo 100% de reajuste nos soldos dos praças, 80% para os oficiais e 60% para os servidores civis, incluindo o Poder Judiciário.

A união dos sargentos era grande e eles estavam dispostos a tudo. Um jornalista aluízista mantinha um programa, às tardes, através da Amplificadora Cruzeiro do Sul - uma espécie de rádio comunitária. Este cidadão todo dia criticava os sargentos dizendo que eles mereciam ficar presos num xadrez com um metro quadrado. Os sargentos se reuniram, a fim de darem uma surra  no jornalista, este, se escondeu e o programa passou muito tempo fora do ar. Ameaças, insultos, campanhas sujas contra os sargentos, nada  os intimidava. Eles estavam destemidos e insolentes.

Aluízio queria a todo custo vingar-se dos sargentos, e como prova disto basta dizer que ele designou para presidir o Inquérito Policial Militar, a fim de apurar a responsabilidade criminal de quem achado em culpa, o coronel do Exército Rolendino, seu correligionário político, em cuja residência conservava hasteada  uma bandeira aluizista com dois metros de tamanho. Decorreram-se vários dias com o coronel presidindo o IPM, porém, em nada nos agradava, pois os fatos se convergiam para o aluizismo, e nós poderíamos cair numa emboscada armada habilmente por Aluízio.

Resolvemos, então, contra-atacar. Protestamos a presença do coronel Rolendino à frente das investigações e solicitamos a nomeação de outro oficial.

 

 

General Justino avocou o IPM

 

 

T

omando conhecimento sobre a nossa insatisfação, o Comando de Ocupação - coronel Mendonça Lima -, entrou em contato com o general Justino Alves Bastos, que avocou a questão da Polícia Militar e nomeou o coronel do Exército Silvio de Melo Cahú, Comandante do Colégio Militar do Recife, destituindo o coronel Rolendino.

Gaúcho, de educação finíssima que causava inveja, o coronel Silvio Cahú portou-se com toda nobreza, e acima de tudo, justo. Como novo presidente do feito, anulou os depoimentos anteriores, e começou tudo de novo. Os depoimentos foram realizados com absoluta cautela e sem pressa, deixando-nos bem calmos. O coronel, antes de começar o interrogatório, conversava sobre assuntos diferentes que não se relacionavam com o seu trabalho.

O clima mudou totalmente, pois dezenas de companheiros que se encontravam afastados do expediente iam diariamente ao quartel em busca de informações sobre o desenrolar dos fatos.

Fomos postos em liberdade no dia 3 de outubro, por determinação do coronel Silvio Cahú, depois de 19 dias presos e concluído  o  IPM.  No  relatório,  o  coronel  nos  enquadrou em crime militar de motim, remetendo o Inquérito Policial Militar ao general Justino, que ao examiná-lo, deu o seu parecer descaracterizando o enquadramento do presidente do feito, qualificando-o para crime comum, portanto, devia ser julgado pela Justiça do Rio Grande do Norte.

O processo foi ao Superior Tribunal Militar. O ponto de vista do general Justino foi aceito por aquele tribunal, que mereceu a apreciação favorável do Promotor Silvio Barbosa Sampaio e do Ministro Orlando Moutinho Ribeiro da Costa, este último, o relator do processo.

 

 

Harmonia com o Exército

 

 

U

m fato que chamou bastante à atenção da sociedade civil, que cuidadosamente acompanhava toda a trajetória do movimento, era o comportamento entre os oficiais da Polícia Militar e do Exército.

Num ambiente de inteira fraternidade e de entendimento recíproco, os oficiais das duas forças jogavam gamão e damas, curtindo um “bate papo” animador e  sem inibição. Foi esta a recomendação que o coronel Mendonça Lima fez aos seus oficiais.

Os sargentos que comandavam a guarda do nosso alojamento cultivavam especial atenção aos seus colegas presos. Deles ganhamos um amigão - o sargento Campos -, que era estudante de medicina, e chegou ao posto de  tenente-coronel Médico do Exército.

Os policiais militares tinham grande admiração pelo coronel Mendonça Lima, que ao concluir a sua missão, cumprimentou, individualmente, todos os oficiais da corporação, dispensando-lhes especial atenção. Igualmente, o fez com os poucos soldados e sargentos que os encontrou no interior do quartel.

Tanto o coronel Mendonça Lima, como os demais oficiais do Exército não esconderam o sentimento de compreensão pelo drama do qual foi vítima a Polícia Militar.

Alguns setores como Finanças, Capelania e Boletim passaram a funcionar normalmente. Não obstante, por alguns dias, a segurança da cidade e a guarda da Casa de Detenção continuavam com as Forças Armadas.

Até as classes conservadoras, através de sua associação, informaram que tinham o máximo interesse para que o clima de paz e tranqüilidade fosse preservado, inclusive publicaram nota oficial firmando vários pontos, entre os quais a recomendação ao governo para a imperiosa necessidade de revisão nos desenfreados gastos públicos, resguardando, evidentemente, os relacionados com o programa de infra-estrutura.

De fato, a paz e a tranqüilidade foram restabelecidas, graças a Deus; e a mensagem do governo fora aprovada em regime de urgência.

 

 

Novo comandante na PM

 

P

ara comandar a corporação, o Ministro da Guerra designou o coronel do Exército Silvio Ferreira da Silva, que tomou posse sem tropa no quartel.

As informações que o coronel Silvio recebeu do Palácio da Esperança eram de que o mesmo iria comandar uma tropa rebelde e indisciplinada. Que teria muita dificuldade para repor a discililpna na tropa. O novo comandante estava certo disto. Estava convencido  que na Polícia Militar só existiam homens desordeiros e indisciplinados, e que iria expulsar muita gente.   Mas foi puro engano! Ele percebeu logo serem as informações infundadas. E, ao contrário, comandou policiais  ordeiros, pacatos e verdadeiros heróis, como o disse no seu discurso de despedida diante da tropa, e do governador Aluízio Alves, que baixou a cabeça.

Terminados os 30 dias de dispensa, a tropa retornou ao seu quartel, porém, com algumas coisas mudadas. Apesar da fome reinante, os policiais militares nunca retiraram um coco verde dos coqueiros do quartel, pois se o fizesse seria motivo de cadeia. Isto, todavia, não aconteceu com os soldados do Exército, que não passando fome, os quais acabaram com os cocos.

A tropa do Exército devolveu o quartel à Polícia Militar. Os oficiais reassumiram os comandos das unidades.

Com a saída dos sargentos do Exército, toda a louça que havia sido comprada, foi retirada do cassino, e os sargentos voltaram a comer em bandejas de alumínio cheias de sebo e fedorentas. Eu e vários companheiros fomos  em busca do material, pois se os sargentos do Exército tinham direito, nós também o tínhamos.  Procuramos o tenente José Freire Sobrinho, chefe do Rancho, que nos levou à presença do coronel fiscal. Este foi ao comandante geral em companhia de tenente Freire, mas, foi logo dizendo:

n  Comandante, os sargentos estão com estória de comer em pratos, com talheres, mas, sargento come é em bandeja.

n  Bota tudo quanto os sargentos estão pedindo. Se não tiver, mande comprar - determinou o comandante.

n Mas, comandante!? Sargento comendo em pratos!!

n  Cumpra minha ordem  e não discuta - concluiu o comandante.

 A retirada do Exército e a tropa da Polícia Miliitar retornando às suas atividades normais, ocorrera uma estrondosa mudança de comportamento entre todos os níveis da hierarquia policial militar.

Os oficiais que antes da greve tratavam os seus subordinados como um lixo, mudaram admiravelmente. Tratavam os praças com mansidão e companheirismo. Aos subtenentes e sargentos, dispensaram fino trato e até com orgulho.

Antes, tratavam os praças como um lixo, agora, até com louvor, principalmente os subtenentes e sargentos. 

Afinal de contas, os graduados foram os responsáveis pelo início de todo o movimento reivindicatório, que terminou com sucesso. Com a população do lado da Polícia Militar.

 

 

IPM na justiça RN

 

 

O

 Inquérito Policial Militar foi remetido à Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, e virou uma verdadeira “batata quente” nas mãos dos juizes e promotores, que sempre alegavam suspeição. É que o Poder Judiciário e o Ministério Público também haviam se beneficiado com a greve dos sargentos da Polícia Militar recebendo 60% de reajuste.

No documento elaborado pelo relator, Ministro Orlando Moutinho Ribeiro da Costa, apontava os responsáveis pelos fatos acontecidos, dentre os quais o coronel Luciano, Gil Xavier de Lucena e alguns sindicalistas.

O processo ficou parado. À justiça não lhe seria fácil encontrar culpados no meio de homens que não suportando tanta fome, resolveram cruzar os braços. O Poder Judiciário e o Ministério Público, na verdade, estavam diante de uma situação constrangedora.

Uma atitude estranha foi adotada pelo Governador do Estado do Rio Grande do Norte, o senhor Aluízio Alves. Ele conseguiu colocar as mãos no processo que se encontrava com a justiça. Tendo-o em seu poder, praticou o absurdo, aplicando punições perversas e vingativas contra os  policiais militares. E, ao seu bel-prazer, sem nenhuma chance de defesa, ele mesmo deu o veredicto.

Surpreendentemente, no dia 14 de fevereiro de 1964, foi publicada a lista dos condenados no boletim do Comando Geral da Polícia Militar. Como já o disse, eles não tiveram nem o direito de defesa, senão amargar o ódio e a ira da perversa pena governamental. E assim, foram expulsos das fileiras da corporação os sargentos Gil Xavier de Lucena - como principal responsável -, Valdeci Aquino de Lacerda, Cícero Martins  de Castro, João Marcelino Filho, José de Oliveira, João Vaz Guedes Alcoforado e José Basílio.

Continuando, o senhor Aluízio, na sua insaciável sede de estranho julgador, ainda determinou que não fosse concedido engajamento, nem reengajamento nas fileiras da corporação, e expulsar os que houvessem sofrido punições disciplinares.

O ato do governador também atingia a assistente social Maria das Dores Costa, que foi demitida, causando protestos por parte do Sindicato dos Assistentes Sociais do Estado do Rio Grande do Norte.

Os sargentos se reuniram em assembléia geral em sua entidade representativa de classe e publicaram nota de protesto contra o ato arbitrário do governador.

Alguns segmentos da sociedade fizeram companhas de doações em defesa das famílias dos sargentos expulsos, havendo até a abertura de uma conta bancária, na qual diversas pessoas famosas depositaram suas contribuições.

O tempo passou e os sargentos expulsos foram caindo no esquecimento, mesmo porque não tardou a  haver o golpe militar de 31 de março daquele ano de 1964, e ninguém mais queria prestar solidariedade aos companheiros que foram cruelmente penalizados.

 

 

 

 

Minha vida era um inferno

 

 

O

ato de Aluízio não me atingiu, pois, eu não estava de tempo findo, nem precisava de reengajamento. Tampouco sofri punições antes. Contudo, os meus mesquinhos algozes da Polícia Militar transformaram minha vida num verdadeiro inferno.

Fui transferido, aleatoriamente, para a Companhia de Polícia Militar com sede em Macau.  Mandaram me chamar, e simplesmente, disseram-me:

“Sargento Júlio, amanhã à  tarde é para você está se apresentando ao comandante da Companhia em Macau”.

Naquele mesmo instante, procurei o tesoureiro da corporação, ao qual solicitei a ajuda de custo que me facultava a lei. O chefe da tesouraria me encarou e exclamou:

“Você quer o quê!!?... Hein, sargento?... Hein, seu agitador!?... Você se vire e suma daqui, senão eu mando lhe recolher ao xadrez”.

Sem dinheiro para viajar, tive que recorrer a um empréstimo na Ceas - Caixa de Economia e Assistência Social da PM, cujo dinheiro era do nosso bolso, mas, chegou um coronel e levou todo o dinheiro para comprar um carro. Alguns companheiros, vendo minha situação fizeram uma vaquinha e eu viajei. E, no dia seguinte segui destino à cidade de Macau.

Quem comandava aquela unidade policial militar era o capitão José Fernandes de Oliveira, o qual recebera um telegrama cheio de recomendações perversas contra a minha pessoa. O comportamento do capitão era muito diferente do procedimento infeliz e miserável dos meus perseguidores. Solidário comigo, ele colocou-me à sua disposição e fora das escalas de serviço. Fiquei responsável pelos trabalhos burocráticos do seu gabinete, bem como pela confecção do boletim diário, o qual era lido ao meio-dia com a tropa em forma.

Não me dei bem em Macau. Adoeci e fiquei 45 dias sem assistência médica, forçando-me retornar à Natal.

O capitão José Fernandes, que criatura de bom coração! Da regra, ele era a exceção. Externou-me a sua preocupação. Ele sabia que eu iria cair nas garras dos meus perseguidores.

A Junta Médica da Polícia Militar me deu 90 dias para tratamento de saúde, permanecendo em Natal. Apesar de doente, não me pouparam das escalas de serviço e outras missões.

Muitos oficiais crápulas viviam me insultando. Chamavam-me de indisciplinado, de desordeiro,  de comunista e agitador. Afrontavam-me de todo jeito tentando arrancar de mim um ato de indisciplina com o objetivo de provocarem minha expulsão da Polícia Militar, porém, não logravam êxito. Mas a onda de perseguição estava apenas começando.

 

 

O golpe militar

 

E

 

m 31 de março de 1964, houve o golpe militar. As Forças Armadas assumiram os destinos do país.

Iniciavam-se as investigações sobre as atividades subversivas no Rio Grande do Norte, ocorrendo prisões de gente famosa e que estava no poder como Djalma Maranhão e Luiz Gonzaga, Prefeito e Vice-Prefeito da Capital Potiguar, respectivamente.

Fui escalado com outros companheiros da Polícia Militar para integrar uma patrulha mista com o Exército e fomos à cidade de Macau, onde prendemos diversas personalidades políticas daquela cidade, inclusive líderes sindicais. No meio dos presos encontravam-se o Prefeito da Cidade, senhor Venâncio Zacarias e o seu filho Floriano Bezerra, deputado estadual, que inicialmente foram recolhidos aos xadrezes da delegacia local, aonde eles iam costumeiramente soltar os seus correligionários.

 Os presos foram reconduzidos para o Hospital da Polícia Militar e recolhidos  ao   pavilhão   superior  daquela  unidade  de  saúde,  que  fora transformado em prisão para os presos políticos, onde eu concorria à escala de serviço, montando-lhes guarda.